quinta-feira, outubro 30, 2008

CAMILO DE ARAÚJO CORREIA (1925-2007)
















No dia 30 de Outubro do ano passado faleceu Camilo de Araújo Correia, que também foi médico como seu pai João de Araújo Correia; e também um bom tratador da língua portuguesa em livros e crónicas jornalísticas que merecem não ser esquecidos.

Não quero deixar de partilhar com o leitor o prazer que tive há pouco tempo de, pela primeira vez, ter entre mãos um livro do autor de Histórias na Palma da Mão; um livro que reedita e reúne em um só dois títulos anteriormente publicados e entretanto esgotados. Aparecem agora sob título Outra Vez Coimbra Minha (2007) as crónicas memorandas e memoráveis de quando o autor era um lúcido e risonho estudante morador da “República do Palácio da Loucura”, na Coimbra estudantil dos princípios de 50. Tínhamos na cidade universitária uma cultura com um toque de graça e excentricidade tais que nada invejavam à oxoniense, com a vantagem nossa de termos criado uma música e instrumentos originais que os ingleses nunca sonharam.

Estas saborosíssimas crónicas são de ler e chorar por mais; por isso esperamos que as restantes, dispersamente publicadas pelo autor, se reúnam e editem depressa em livro. Do título citado, como é impossível destacar uma entre a igual excelência de todas, vai esta, quase ao acaso e quase na íntegra.
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A NARCEJA

As armas do estudante de Coimbra não passavam das necessárias à execução da praxe: a tesoura para cortar o cabelo aos caloiros apanhados na rua depois do toque da “cabra”, a colher de pau para umas palmatoadas nos estudantes do segundo ano encontrados fora de casa depois da meia noite e a moca, como todas as mocas, para o que desse e viesse…
No “Palácio da Loucura”, embora respeitadores da praxe académica, nunca fomos muito dados a organizar trupes para bater as ruas à procura de caloiros e semi-putos atrasados no recolher. Havia colheres, mocas e tesouras só para as emergências. Além destas, não havia qualquer arma de qualquer espécie.
Um ano depois das férias grandes, o Alcino apareceu lá com uma caçadeira, resolvido a matar o vício nos campos do Mondego. O aparecimento daquela espingarda foi de uma emoção difícil de descrever. Com toda a gente à volta, parecia uma arma acabada de inventar.
O Alcino não contava com as perdizes e os coelhos da sua terra dúrio-beirã. As esperanças estavam num passarolo que lhe diziam ser muito abundante nos terrenos alagadiços – a narceja.
Até à saída do nosso caçador, fizeram-se mil projectos culinários:
- A carne da narceja deve ser como a do pato… Aposto que dá uma arrozada do caraças!
- Eu acho que deve ligar bem com ovos!
- Nunca vi uma narceja… mas não me cheira a pássaro muito grande… e se fizéssemos uma boa fritada com cebola?
- Se forem pequenas, antes as quero panadas!
No primeiro domingo o Alcino foi para a caça ao romper do dia e regressou ao romper da noite. De espingarda, enlameado e triste, parecia um soldado sobrevivente de uma batalha perdida. E, quanto a narcejas, nada!
Ao espanto de cada um, respondia com as dificuldades do tiro:
- A narceja tem um voo estuporado! Sobe ao ar e depois dispara para um lado qualquer, às curvas… para cima e para baixo!...
A malta pareceu compreender. Mas, à terceira saída em branco, começaram as piadas:
- Por onde andas, até já devem julgar que és guarda-rios…
- Ao menos não digas às narcejas que és do “Palácio”!
- Porque não vais aos caracóis? Sempre serão mais fáceis de apanhar…
O Alcino, de muito bom feitio, lá ia aguentando…

(…)

Numa tarde, resolvemos ir à caça com o Alcino. Devíamos ser uns quatro ou cinco. A intenção era ficar numa tasca da Guarda-Inglesa, a larachar e a beber uns copos, enquanto o Alcino andasse por ali à volta a espantar narcejas.
O vinho era bom, o tasqueiro encantado com os “senhores doutores” e a mulher, gorda e de um riso tão convulsivo que batia com os seios no balcão como se fossem luvas de boxe.
A boa disposição generalizou-se de tal maneira que acabou em baile campestre. Rapazes e raparigas de por ali foram aderindo com alegria e confiança. Dançou-se com a música que um rádio roufenho nos ia dando num pátio atravessado por um rego de escoamento de águas. Era divertidíssimo fazer coincidir os passos de dança com a travessia do rego. Por último, já havia pares que o saltavam a pés juntos, de mãos dadas…
A certa altura, alguém berrou:
- Alto e pára o baile!
O Alcino estava à entrada do pátio, enlameado e sorridente. Do cinturão, bem ao meio, pendia um pardal a que tivessem crescido demais as patas e o bico. O nosso caçador tinha, finalmente, abatido uma narceja!
Partimos, depois de mais uns copos e muitas mãozadas de despedida. Quando chegámos à ponte, já as luzes da cidade venciam as luzes do entardecer. Pelo caminho, até à “república”, parámos vezes sem conta para ver e apalpar a narceja, outra e outra vez…
- E foi para um bichinho destes que trouxeste essa artilharia toda?
- Ela está inteirinha… deve ter morrido de susto… com a estoiraria…
- Aos tiros que deste, até hoje, esta narceja deve andar por vinte contos… mais cartucho, menos cartucho…
-Já agora, podias embalsamá-la!
- Ela até parece grávida! – disse um, ao apalpar a narceja com ares de entendido.
Ao chegarmos ao meio da Couraça dos Apóstolos, o Alcino estoirou:
-Porra!
-Malcriado! – reagiu uma velhota que ia a passar.
Malcriado, o Alcino… Depois da Rainha Santa, ele foi a pessoa mais educada que passou por Coimbra. Juro!

terça-feira, outubro 28, 2008

ROCHA FORTE

Aconteceu vai para um ano, na finisterra bretã. E já em Março deste ano tiveram outra pior.
Eu prefiro estas às cavadas depressões portuguesas, que se desfazem sobre nós de mansinho e vão minando pela calada.
O vídeo é uma parábola útil para as que temos sobre as nossas costas. O leitor interessado em não perder o pé tem aqui os símbolos das duas construções e luzes suficientes para resistir e triunfar.
É pena a música: em plena luta, é descabido o Requiem. A da Natureza bastava.

sábado, outubro 25, 2008

"Açor, serra da Lousã, 25 de Outubro de 1942"

«Aqui estou, no alto desta serra ondulada, sentado, a contemplar um largo horizonte, enquanto a cão abana o rabo, um tanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. (…) Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. (…) falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno.»

Miguel Torga, Diário, vol. II.

sexta-feira, outubro 24, 2008

"Coimbra, 24 de Outubro de 1960"

« Quando o homem sublima as coisas, nascem os deuses pagãos; quando sublima o semelhante, nasce Cristo; quando se sublima a si próprio, nasce o tirano. Mas este pode também ser gerado por auto-aniquilamento colectivo. Nesse caso, não é o super-homem que se afirma: são os infra-homens que o afirmam. »

Miguel Torga, Diário, vol IX.

quinta-feira, outubro 23, 2008

O “FIM HISTÓRICO DE PORTUGAL”



Todas as nações são mistérios.
Fernando Pessoa


Ponho ponto final nesta série de postais sobre o que somos e como estamos, que pode ser só acerca de um lindo nome: Portugal. – Tão bonito nome! Que o leitor amigo perdoará eu me permita pronunciar, conversando em família, com prosódia pouco comum, e só não lhe digo como é porque, se o leitor não pertence à nação portuense e tem uma aborrida susceptibilidade a um certo clube futebolístico… - decerto me não perdoaria. – Mas, digo que também o Porto é uma “nação”? Dizem que sim. Contudo, fique descansado que eu não sou tão visceralmente (tripeiralmente) portuense a ponto de rebuscar vetustos pergaminhos de excelência nacionalista sobre os “mouros” lisboetas. Isto são cá maneiras de quem ficou com as tripas retribuir a quem levou os lombos, e nos pagou a generosidade com remoques brejeiros… É também a maneira de sublinhar a tão extraordinária diferença de carácter e estilos entre estes dois lugares da beira-Atlântico, afinal distanciados por relativamente poucos quilómetros: o Porto macho e a mulher (boa) que é Lisboa.

É claro, não esqueço que o nome “Portugal” vem do nosso Porto, mas não se sabe se o Portus Cale não era Gaia, e os gaienses já não são bem, bem os portuenses (uma inefável diferença análoga dos almadenses para os “alfacinhas”). Gaia até seria mais importante, e tanto que o (talvez) mais antigo lugar e origem do nosso burgo – Miragaia – lhe pediu o nome; era o Castrum Novum suevo, assim chamado para se distinguir do veterum que lhe ficava diante. Por outra parte, a vindicação de tais longevos pergaminhos levar-nos-ia para fora das fronteiras da “Lusitânia”, esse famoso e fabuloso alfobre étnico dos portugueses… Ora, nesse sentido, aquele maravilhoso altiplano entre o Caramulo e a Estrela, centrado na “cidade de Viriato”, poderia a justo título reivindicar mais raciais purezas! Mas, essa capital – Viseu -, era terra de “Lusitanos” (cuja capital era a estremenha "espanhola" Mérida) ou dum outro povo, os chamados “Vaseus”?... Lembra-me que já o nosso humanista e patriota Fernão de Oliveira, no séc. XVI, o primeiro autor de uma Gramática do português, o primeiro autor de uma (com este título) “História de Portugal” refutava a lusitanomania dos seus coetâneos humanistas com bons fundamentos geográficos. Para ele, os portugueses eram muito mais antigos: eram filhos de Túbal, netos de Noé e do Dilúvio. (Não foi o primeiro a pensar assim.) Trocando a arca pela barca, teria navegado e chegado do sul àquele ameno abrigo onde está Setúbal, - a primeira cidade portuguesa… Ora, neste local e nestes primeiros tempos pós-diluvianos, não ficamos longe da Atlântida e da gente da borda d’água, por onde vimos navegar a imaginação do sr. general João de Almeida.

Uma tarde, junto com alguns amigos que nos reuníamos às vezes sob as copadas, odoríferas sombras da quinta da Macieirinha, em volta duns cálices do belo fino, veio a pelo lembrar tantos dos que foram de aqui atraídos a Lisboa e, descontentes ou traídos da boa, se lançaram mais longe à procura de melhor. Entre outros, lembramos o erudito letrado digno de seus mestres Basílio Teles e Sampaio Bruno, o autor suposto no título deste postal – Amorim de Carvalho (1904-1976) -, título da última obra que escreveu. Este republicano conservador da República abortada no 31 de Janeiro de 1891 – a qual nada tinha com a mera substituição dos comedores partidos monárquicos pelos não menos vorazes partidos republicanos, nem com demagógicas inflamações anti-clericais – mantivera-se fiel aos ideais ultramarinistas das primeiras gerações republicanas, que tinham as colónias como “território sagrado da Pátria”. Para Amorim, a vergonhosa debandada de 1974-75 marcou para Portugal – sem a Índia, sem o Brasil e agora sem África – o fim da sua História como Estado com autonomia política viável. A causa que teria levado a nação a um tão desastroso efeito radicava socialmente na acção das elites desnacionalizadas. Amorim de Carvalho tem muito de prestável a dizer-nos com a sua teoria das elites, mas, apesar do seu interesse sociológico, parece-me ainda muito tributária destes dois pontos: uma excessiva fixação no político; e é mais uma variação sobre a velha polémica entre nacionalistas e “estrangeirados”. Ora, digo eu, nem o político (o carácter político) tem de marcar a essência de uma elite sociológica; nem os “divórcios” entre categorias sociais ou ideológicas são necessariamente relevantes para a “decadência” ou o “fim” da nossa nação portuguesa, como sugeri noutro dia.

Aos amigos da ocasional tertúlia levantava eu (e ergo agora!) um cálice do generoso duriense, dizendo-lhes que este nosso vinho tão português que bebíamos talvez nunca tivesse sido tão bom como o temos hoje; que, em todo o caso, seria muito diferente há séculos atrás (antes do XVIII não era aguardentado). E não sem pequeno escândalo disse-lhes também que, para mim, uns muito bons portugueses de hoje eram… holandeses! É claro, tive de me explicar: uns holandeses que há cerca de trinta anos vieram novos para cá, correram a nossa terra de lés a lés, por ela se apaixonaram e por cá casaram e lhes nasceram e criaram filhos; uns que, na Beira Alta, quase que só por suas mãos têm recuperado ou construíram de raiz casas que conservaram cuidadosamente os típicos materiais e traça beirã; uns que falam português e se interessam pelas nossas coisas muitos mais e melhor que muito por cá nados e que por cá nadam parece que só para afogar os compatriotas.

Leitor paciente, eu disse que punha fim a uma série de postais, não a Portugal. Continuaremos.


[ Continuamos?... Mas, de que maneira, em que estado? Nada, neste apontamento e nos anteriores, pretende fazer esquecer notícias com esta: « O consumo de medicamentos ansiolíticos, hipnóticos, sedativos e antidepressivos não pára de aumentar em Portugal.» Há poucos anos éramos os segundos maiores consumidores na EU; agora, esta notícia do mês passado não diz se já somos os primeiros. Nem fala das outras drogas. Vamos indo assim. A gente, psicologicamente instável, como meteorologicamente o tempo; a terra, 36% desertificada, infértil e envelhecida, como a gente. Etc.. E o demais que nos informam as agências noticiosas. Mas os jornais dizem pouco e repetem muito. Tal como nós, os “portugueses”, com este ou outro nome, vimos de mais longe, o nosso maior problema é muito mais antigo e não é mais (se alguma vez foi) essencialmente político nem nacional: é um problema essencialmente do (que é ser) humano e, portanto, um problema universal. Os mesmos jornais se vão apercebendo e preparando os leitores para ele.

Entretanto, ponhamos os olhos em cima - em alto! - e deixemos o nosso emblema em boas mãos… ]

quarta-feira, outubro 22, 2008

"Coimbra, 22 de Outubro de 1950"

« Como uma onda que nenhum temor da praia detém, a vaga do “nihilismo europeu” de Kafka avança inexoravelmente sobre nós. Em casa, no consultório, no café, na rua, e até na mais remota aldeia que visito, um caruncho silencioso mas terrível esfarela os valores e a consciência deles.
Os livros que se escrevem, as lições que se dão, a sementeira ou a missa, não são actividades alicerçadas em nenhuma grande certeza humana ou esperança divina. Hábitos ou necessidades rudimentares, significam apenas que no homem também a lei da inércia se verifica. Sentimos todos ainda a responsabilidade de viver, mas em termos tão imediatos, tão fisiológicos, que a seta que devia sair do arco airosa e alada cai-nos aos pés tolhida pelo lastro de chumbo que lhe pusemos.
Fruto da mesma árvore social que nos gerou a todos, recuso-me contudo à degradação de encarquilhar passivamente no tabuleiro do desespero. Escrevo. E nada de mais cobarde e abjecto do que um artista que se desquita da solidariedade que deve às palavras que proferiu e às esperanças que movimentou.
A onda de nihilismo avança inexorável. Cheio do seu gelo e do seu terror, olho-a do areal com imperturbável coragem. A sua fúria, que tanto me faz sofrer e temer, nada poderá contra mim. Nem fraga para lhe resistir com a dureza da pedra, nem duna para me amoldar à sua vontade, sou no entanto um homem disposto a lutar. Morrer não tem qualquer importância, desde que seja a esbracejar. »

Miguel Torga, Diário, vol. V.

segunda-feira, outubro 20, 2008

"Coimbra, 20 de Outubro de 1993"

[Comentando um livro do grande medievalista francês Jacques Le Goff ]

« Um pequeno livro sobre S. Francisco de Assis. Cem páginas ardentes, febris, dum imaginário de boas mãos e claro entendimento, que se apurou mais na verdade humana do retratado que no brilho do seu resplendor divino. Mas foi a feliz maneira de evidenciar aos olhos deslumbrados do leitor, dos meus, pelo menos, seu devoto de há muito, a realidade de um santo com santidade para todos os tempos, único homem da Criação que na terra se mediu naturalmente com a grandeza de Cristo. Um Cristo mais humilde, sem eloquência em nenhum templo, nem azorrague para expulsar dele nenhum vendilhão, próximo de nós, eternamente criança, Messias da universalidade do amor que gratifica a própria morte e sacraliza de igual maneira as mais significativas e insignificativas manifestações da vida; que teve e tem o seu reino aqui, neste nosso vale de lágrimas, onde reinou e reinará pelos séculos dos séculos, para todos os orgulhos baixo como a lama, e para todos os espantos alto como uma estrela. »

Miguel Torga, Diário, vol. XVI.

sábado, outubro 18, 2008

"Coimbra, 18 de Outubro de 1993"

« Radioterapia. As mezinhas a que a nossa pobre condição tem recorrido através dos tempos para mitigar o sofrimento! Desde as benzeduras e a víbora da infusão, aos ópios e raios invisíveis da ciência, tudo foi experimentado. E a desgraça é que as dores continuam a crucificar-nos, e só o triste pranto de sempre nos alivia. As lágrimas irreprimíveis do fatídico desespero humano, chaga viva do corpo e da alma, sem possível explicação e sem cura. »

Miguel Torga, Diário, vol. XVI.

quinta-feira, outubro 16, 2008

UMA BARCA CHAMADA “PORTUGAL”



O leitor pode ter dito para si: - Olha, a Sagres! – E eu digo-lhe: Não, é o Albert Schlageter, que foi construído em 1937-38 na Alemanha, para treino naval; que foi utilizado como transporte de tropas na 2ª Guerra e acabou capturado pelos americanos. – E o leitor informado entra na brincadeira e responde-me: Não, é o Guanabara, que entre 1948 e 1962 fez parte da armada brasileira!...

Nas três citadas atitudes proposicionais há boas razões de facto e, referindo todas o mesmo navio, as correspondentes asserções são todas verdadeiras. Mas, às vezes, é a chamada “realidade” que também brinca connosco….

Olhando certa ocasião uma fotografia, eu afirmava e reafirmava que era a Sagres: o mesmo elegante perfil, a mesma armação, as mesmas distintivas “cruzes de Cristo”… Pois aproximando-me do quadro, li admirado a legenda que me desmentia: era o nosso anterior navio-escola Sagres, também construído na Alemanha (em 1896) e apresado pelo governo português quando da 1ª Guerra. Só então, olhando mais de perto e com mais atenção, reparei nas pequenas visíveis diferenças. E reparamos nós que a questão não é de nomes (a nossa velha Sagres, que já se chamara Flores, acabou, em 1962, como navio-depósito com o nome de Santo André). E assim sendo, chamemos-lhe "Portugal" e vamos rumando à metáfora.

Pergunto: se não é uma questão de nomes, é verdadeira a proposição – A corveta Albert Schlageter é um navio português ? – Se abstrairmos no “é” um indicador temporal e fixarmos apenas o ligador lógico entre predicado e predicando, a resposta só pode ser afirmativa: o mesmo navio alemão é o mesmo navio português. – Mas então esse mesmo navio que já foi alemão, americano e brasileiro não pode não ser português? – Pode, se foi assaltado e apresado por um bando de piratas, algures nos mares da China ou das Caraíbas, que se apropriou dele e lhe deu sumiço. (O meu respondente está informado que a pirataria marítima aumentou grandemente nas últimas décadas, neste nosso civilizado planeta…) – Então não é o facto de ser o mesmo navio que o faz “português”, mas a posse actual dele por uma tripulação de gente portuguesa ao serviço do governo português (não esquecer o que aconteceu com o apresamento feito pelo nosso governo republicano). – Bem, queres então dizer na tua que é a posse actual de um certo território que justifica o nome “Portugal”?... – Não, não é a posse, actual ou inactual, legítima ou ilegítima, mas sim a identidade do possuidor, seja proprietário ou expropriado, presente ou emigrado para outra terra. A tripulação, ou esteja no barco ou abandonada numa ilha pelos piratas, é o que dá sentido (orientação e rumo) ao nome “Portugal”. – Então parece não importa nada que se chamem “lusitanos”, “portugueses” ou, simplesmente, “europeus”… - Importa muito ou tudo… se os diferentes nomes significam na verdade diferentes identidades, que se foram assumindo e fixando com o tempo. – Mas então que sentido pode ter hoje o nome “Portugal” se a tripulação já não for portuguesa, como já não eram lusitanos os portugueses?

Eis-nos de chofre prestes a encalhar nos metafísicos penhascos da identidade: duro problema! Tanto que já vimos noutro dia o tardomedieval polaco Nicolau Poplau espetar-se neles, para nada lhe valendo o espadagão que trazia à cinta, de tal maneira enorme que lhe era preciso um acompanhante criado pegar-lhe na ponta da espada, para que não cortasse o chão! Dizia ele que os portugueses éramos “preguiçosos, cruéis, invejosos e feios”. Mas, eram o mesmo, mais ou menos, os nossos vizinhos castelãos. Responderíamos então ao Poplau, a posteriori, que a diferença específica dos portugueses estaria em sermos grandes comedores de bacalhau? Ou, citando o sr. general João de Almeida, que lembrámos na semana passada, será que somos assim: « Estatura mediana e robusta, cabeça longa, dolicocéfala, de occiput desenvolvido, suturas complicadas, face moderadamente alongada, mesoprozapa, glabela acentuada, nariz mesorrínico, órbitas micozenas, olhos e cabelos escuros, cor morena, fémures em pilastra, tíbias platicerémicas na sua maioria, e húmeros quase sempre perfurados». Pois se deste jeito, parece que, encarando as nossas faces mesoprozapas e tíbias platicerémicas, tinha razão o polaco em se desagradar do retrato. Ou, fixando-nos na “época áurea” da nossa História, diríamos que os portugueses eram “os produtores do vinho de Lamego” (como então se chamava com mais justiça ao nosso vinho do Douro) … Ou que eram “os primeiros da Europa a passarem além do Bojador”?... Ou estoutra: “portugueses são os que derrotaram os castelhanos nos campos de Aljubarrota” (ou, em equilibrada alternativa: “os que foram derrotados pelos castelhanos na batalha de Toro”) …

Parece ao leitor que este tipo de resposta satisfaz à questão: - quem são os portugueses? Bem, há uma dificuldade. Respondemos com acontecimentos contingentes a uma pergunta acerca de propriedades essenciais – as que nós não podemos não ter sem deixar de ser quem somos. Contudo, é logicamente pensável um conjunto de todas as proposições contingentes conjuntas sobre factos empíricos – todos os acontecimentos espacio-temporais constituintes da nossa “História”; cada um destes seria isoladamente contingente, mas todos conjuntamente necessários para a identidade de uma pessoa individual ou colectiva. À maneira hegeliana, a razão desta identidade estaria no desenvolvimento espacio-temporal das suas sucessivas determinações, vectorialmente orientado para uma graduada maior consciência de si, cuja verdade se daria na compreensão total e final desse processo. Bom, forçando um pouco a “lógica” desta razão que se auto-revela no tempo, até ao fim do seu tempo como pessoa individual ou como pessoa nacional “portuguesa”, teríamos este resultado paradoxal: um indivíduo só poderia – na verdade – saber quem é, depois de ter dito e feito tudo, isto é… depois que morreu; só os outros que lhe sobrevivessem e se interessassem por isso é que poderiam saber quem ele era. (Solve-se o paradoxo se a final verdade for revelável em outro mundo, não espacio-temporal…) Os portugueses só poderiam chegar à final verdade sobre quem são… depois de desaparecido o último português vivo. Mas, como saberíamos quem seria este tal abencerragem sem adoptarmos como critério de razão uma mera e arbitrária convenção jurídica (“filho de pais portugueses”, “nascido em território português”, etc.). Contudo, se este critério não vale, e não se antolha nenhum incontroverso em alternativa, ficamos expostos à desagradável suspeita de que o último português já pode ter desaparecido… Será por isso que se assistiu que se assistiu no séc. XX à proliferação de “Histórias de Portugal” e a inquéritos sobre a “identidade portuguesa” (tal como entre 1580-1640, quando vivemos o risco de estarmos hoje todos a falar aqui espanhol) ? O preço de chegar à “consciência de si” seria… ser outro: uma nova tripulação, procurando a identidade dos antigos tripulantes pelo minucioso inquérito de tudo quanto deixaram a bordo. Uma nova tripulação que ainda não substituiu o nome do barco.

Mas há outra dificuldade e não menos desagradável consequência. Suponhamos então que cada um dos acontecimentos da biografia nacional dos portugueses é contingente (D. Afonso Henriques podia não ter aceitado ser o nosso primeiro rei, sim o seu filho Sancho, etc.); mas a conjunção sincrónica e diacrónica de todas as decisões individuais perfaz no tempo a identidade nacional dos portugueses. Se cada um dos acontecimentos é contingente, fica salvaguardada uma (hipotética) liberdade individual dos agentes envolvidos. Teríamos então: cada um dos indivíduos poderia ter agido de outra maneira, mas todos conjuntamente fizeram o que – necessariamente, enquanto portugueses – tinham de fazer. Mas agora suponha-se que a liberdade individual não existe na realidade, é ilusória. O que teríamos? Cada um dos indivíduos fez o que necessariamente tinha de fazer, e todos conjuntamente fizeram o que – enquanto portugueses – necessariamente tinham de fazer. Isto é, precisamente o mesmo resultado. Ressalta à vista a encapelada dificuldade: a liberdade ou não liberdade dos indivíduos seria irrelevante. Contudo, esta dificuldade passa-se bem se não perdemos de vista os dois diferentes níveis existenciais : os actos das pessoas singulares podem ser livres, considerando aqui a liberdade como mera selecção auto-motivada de um entre vários caminhos alternativos ; por outro lado, ao mesmo tempo, a outro nível, instituintes de uma pessoa colectiva com uma identidade necessária, por aqueles historicamente constituída.

Enfim, estas e outras tais são as “suturas complicadas” do problema da identidade. Se é este, em certo sentido, inescapável, não deixa de ser abordável por outros lados e noutros termos. Então, mudemos de amuras e viremos de bordo.

terça-feira, outubro 14, 2008

"Salvaterra do Extremo, 14 de Outubro de 1979"

« Atormentado de todas as maneiras, dei hoje comigo a sossegar a alma neste recanto da pátria, que até no nome é bonito, Cada vez amo mais o Portugal velho, já quase perdido, de ruas aconchegadas, largos domingueiros, pelourinhos severos e torres cristãs, fiel à primitiva decência. Sinto-me nele seguro, idêntico, natural e, sobretudo, fortalecido no meu afã de poeta. As coisas podem ser, como os versos, desafios ao tempo. Basta que estejam certas no espaço e na História. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

domingo, outubro 12, 2008

"Coimbra, 12 de Outubro de 1978"

« A mulher! Não me canso de a exaltar. O que o homem é a seu lado! Um Adão inocente, um Édipo perplexo, um Otelo cego. Flor emblemática da Criação, perfumada de futilidade, só ela sabe pecar sem remorsos, procriar sem vanglória, entender sem lógica. E sofrer paradigmaticamente, já que foi sempre a Antígona heróica da grande tragédia da vida. Dona do mundo e depositária do futuro, nunca o quis parecer, sequer. Gentilmente, deixou essa presunção ao pobre companheiro que, depois de tantos milénios de convívio, continua a revolucionar os tempos sem perceber que é ela o cordão umbilical da História. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

sexta-feira, outubro 10, 2008

GENTE DA BORDA D’ÁGUA



« Quando, em 1888, éramos estudante de História e Geografia no liceu da Guarda… » Abre com estas palavras um excêntrico livro da bibliografia histórica portuguesa. O autor defende uma tese de larga visão, que nos leva além dos pintores do vale do Côa até à gente daquele Menino do Lapedo, essa estranha raça miscigenada de sapiens-sapiens e neanderthal, e mais além ainda, aos tempos em que os grandes rios da Ibéria corriam de oeste para leste… A visão começou assim:

« Na Guarda, favorecida da natureza por vastos e variados horizontes, em certos dias do começo da Primavera observam-se panoramas maravilhosos, de verdadeiro encantamento, tão belos, tão grandiosos e sugestivos que jamais são esquecidos. Logo ao romper d’ alva, todo o território para além dos sopés das serras da Gardunha, da Estrela e de Almançor aparece coberto de uma densa névoa murraçuda, baça e plana à superfície, que nos dá a aparência de um mar morto, de águas completamente paradas. Por cima dessa mar rutila o Sol envolto na sua auréola, resplandecente e criador, numa atmosfera diáfana de azul puríssimo.

« Quem subisse à base do castelo da Guarda observaria esse espectáculo grandioso, e, numa espécie de miragem, veria estender-se a seus pés esse mar, sem fim pela banda do oriente, que cobria a Castela-Velha, delimitado a norte pelas serras de Reboredo, Cimas de Mogadouro, de Colebra e da Pedra Negra, com suas ilhas a aflorar, de encantador recorte, banhadas de intensa luz, as dos Cabeços do Jarmelo, a da Serra da Marofa, e as do cabeço da Zamarra e do Teso Santo. Pela parte do sul estava circunscrito pelas ilhas dos Cabeços dos Arrassaios, das Fráguas e de S. Cornélio, através dos quais se avistavam as lagoas das Estremaduras portuguesa e espanhola, vislumbrando-se, para oriente, esse outro mar de Castela-Nova; continuava esse limite entre os dois mares pela serra das Mesas, Cerro da Jalama, serras da Gata, de Penha Garcia e de Gredos. (…)
« Ao contemplarmos esta impressionante paisagem, um pressentimento, como que uma voz íntima, nos segredava que bem poderia ser a imagem da configuração oriental desta terra lusitana, tal qual seria há muitos milhares de anos. »

Com o aromático dos nomes antigos, tem aqui o leitor um sabor das informações sempre precisas e detalhadas que enchem o livro. Também reparou decerto: águas, mares, lagoas, ilhas… E um “pressentimento”… uma “voz íntima”… Suficientemente fortes e inesquecíveis para, ainda em 1950, o seu autor – o sr. general João de Almeida – vir a conjuntar e sistematizar as investigações em que, desde 1903, trabalhava para fundamentar a tese que era o título desse livro: O Fundo Atlante da Raça Portuguesa.

De facto, esta tese ligava-se a uma outra apresentada pelo autor no seu acto de formatura pela Universidade de Coimbra, em 1901, na base de estudos efectuados no laboratório de Antropologia da mesma universidade, no Museu dos Serviços Geológicos de Lisboa e em “3. 535 mensurações antropométricas feitas sobre o vivo em indivíduos de todo o país”. Pretendia ele demonstrar « a existência de um tipo antropológico de características bem definidas, o qual teria existido há muitos milénios em todo o território moderno de Portugal, possivelmente constituindo os seus primeiros moradores. Designá-lo-emos por Tipo de Mugem, em atenção a terem sido os despojos humanos das jazidas daquela localidade que primeiramente estudámos (…). Com a nossa visita à região de Mugem, a feliz descoberta que fizemos das aldeias palafitas actuais [ diz o autor em nota que, em 1950, existiam 49 aldeias deste género, com 282 casas e 1 421 moradores ] e as investigações e mensurações antropológicas a que procedemos nos seus moradores, pudemos constatar de forma flagrante, clara e insofismável, que o tipo antropológico de Mugem, por nós encontrado e definido, vivia ainda hoje ali, ininterruptamente a mesma vida de há 20 ou 30 mil anos em toda aquela região ribatejana. » O doutoral júri aprovou a tese.

Há mais de 20 mil anos, notou o leitor, lembrando a idade do Menino do Lapedo. Estes humanos do habitat palafita da ribatejana Muge seriam, na tese de 1950, o Homo Atlantis , os descendentes directos dos habitantes do grande arquipélago (seria de facto um grande conjunto de ilhas e não um único bloco telúrico) que, para os finais do período geológico do plistoceno (há cerca de 20 000 anos) « foi submergindo e desaparecendo lentamente, pelo espaço de muitos milénios, até restarem em nossos dias os topos de certos maciços montanhosos, como os das ilhas dos Açores, da Madeira, das Selvagens e das Canárias, e as grandes moles da Britânia, da Lusitânia e Mauritânia, estas soldadas já à Europa e à África. »

Mais ainda: nas extremidades ocidentais destas terras esse afundamento tem continuado - e continua nos nossos dias. Já uma grande fatia das nossas serras da Boa Viagem, de Sintra, da Arrábida, de Sines e do Espinhaço de Cão – “que avançavam muitas centenas de quilómetros para sudoeste, na direcção da ilha da Madeira” – foi comida pelo mar; a grande extensão de terra continental que ia desde Peniche até a norte de S. Pedro de Muel submergiu há cerca de 2 500 e só deixou sobre a linha de água as Berlengas e Farilhões; “nas costas do noroeste da Europa, o afundamento anda anualmente por uns dois ou três centímetros”… Portanto, amigo leitor, não é só o degelo dos polos nem o peso do betão e da multidão nas arribas do litoral. E bem podemos andar de afogadilho a dragar areias do fundo dos rios para continuarmos com turismos balneares. Qualquer dia terei de me contentar de passar o Verão a deitar o anzol da varanda do meu apartamento na praia, e a descer do 3º andar, não para o carro, mas para um bote. E pensar que em 1974-75 voltámos as costas ao mar, para “entrar na Europa”… Mas o mar vem atrás de nós a comer-nos as costas… Não podemos fugir ao nosso fado: como aqueles migrantes da beira-mar de Ílhavo, de Ovar, da Murtosa e da Vieira, que no Inverno vinham pescar para as aldeias palafitas da riba-Tejo, - somos gente da Borda d’Água!

E mesmo que o mar nos não falasse à vista, retirados no interior dessa alta Guarda lusitana – “favorecida por vastos e variados horizontes” -, nem por isso o deixaríamos de ouvir: “como que uma íntima voz”… um “pressentimento”…

… « Na nossa infância, meu Pai, sempre que presidia à ceia, no final, depois de se darem Graças a Deus e de se ter rezado pelas almas dos nossos avós e parentes, terminava a reza: “Pelas almas do Purgatório…, por aqueles que andam sobre as águas do mar, que Deus os leve a bom porto e salvamento, e por aqueles que ficaram soterrados no fundo das águas do Atlântico, para que Deus tenha a sua alma em descanso”. (… ) E de igual forma se rezava naquele tempo em todos os lares da Beira. »



[ Não sei se o guardense ilustre que foi o sr. general João de Almeida (1873-1953) está hoje na sua terra mais afundado no olvido que a Atlântida. Sei que no bonito Museu Militar lisbonense o visitante tem à vista um expositor inteiramente dedicado ao soldado que trouxe de África o nome e a fama de “herói dos Dembos”. ]

quinta-feira, outubro 09, 2008

JACQUES BREL

«Coimbra, 9 de Outubro de 1978.

Morreu Jacques Brel. E estão de luto todos aqueles que sabiam que ele dizia mais aos homens com os seus versos truculentos e as suas canções dilaceradas do que muitos poetas laureados com os seus poemas herméticos. Trovador dos nossos dias, a ganir por não ter amado à altura a que pôs o amor, e a amar a Deus na pele do Diabo, foi uma das raras encarnações raivosas do artista empenhado em reflectir o mundo no espelho da sua própria aflição. E conseguiu-o. Não é apenas um tal, de fisionomia tal e vida tal, que ouvimos quando canta. É uma alma penada em carne viva a penar por todos nós. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

segunda-feira, outubro 06, 2008

"Coimbra, 6 de Outubro de 1963"

« Vou teimando. (…) Tento deixar aos vindouros o sudário real da minha época. Prefiro mil vezes o ódio dos que estão, ao desprezo dos que hão-de vir. »

Miguel Torga, Diário, vol. X.

domingo, outubro 05, 2008

'Os Embaixadores', de Holbein... e Violante do Céu



Depois da minha alarve tresleitura da pintura Et in Arcadia ego, de Guercino - tresleitura que foi correctamente denunciada na própria caixa de comentários do post em que o quadro foi afixado -, procuro aqui redimir-me do meu disparate, deixando duas notas sobre a famosa peça pictórica Os Embaixadores, de Holbein.

O quadro apresenta-nos o retrato de dois nobres renascentistas vestidos opulentamente e acompanhados por objectos que aludem à sua condição social, à sua riqueza e ao seu saber: livros, um alaúde, instrumentos de ciência, etc. O curioso elementos que se encontra aos seus pés introduz uma nota que perturba a pompa do conjunto: trata-se de uma figura em forma de lula, que, quando observada pela direita, se revela uma caveira. Claro que o efeito só se obtém perante o quadro ou uma boa reprodução e não na pantalha de um computador. O significado é óbvio: apesar de seres rico, sábio e jovem e de te terem coberto de honrarias, lembra-te que um dia serás pó. Memento mori.

Nas reproduções da pintura não se nota normalmente a figura de um Cristo no canto superior esquerdo, a emergir por trás da cortina. Se tomarmos o espaço para lá da cortina como o "outro mundo", a mensagem cristã veiculada não carece de muita explicação: Cristo e a fé são a única salvação.


Sobre o tema, não resisto a deixar um curioso poema da Poeta barroca Violante do Céu


Vozes de uma dama desvanecida de dentro de uma sepultura que fala a outra dama que presumida entrou em uma igreja com os cuidados de ser vista e louvada de todos; e se assentou junto a um túmulo que tinha este epitáfio que leu curiosamente

Ó tu, que com enganos divertida
Vives do que hás-de ser tão descuidada,
Aprende aqui lições de escarmentada,
Ostentarás acções de prevenida.

Considera que em terra convertida
Jaz aqui a beleza mais louvada,
E que tudo o da vida é pó, é nada,
E que menos que nada a tua vida.

Considera que a morte rigorosa
Não respeita beleza nem juízo
E que, sendo tão certa, é duvidosa.

Admite deste túmulo o aviso
E vive do teu fim mais cuidadosa,
Pois sabes que o teu fim é tão preciso.


sexta-feira, outubro 03, 2008

A “MORTE DE PORTUGAL” ( II )



Miguel Real assina o restante do seu livro da aldeia de Fontanelas, ao lado das Azenhas do Mar. É uma para tão boa “corte na aldeia” como foi a de Cabeceiras de Basto para Sá de Miranda, e até já experimentada e aprovada: foi em Fontanelas que Vergílio Ferreira concebeu e escreveu muito da sua obra; e não longe de lá reinava também Maria Gabriela Llansol, que hoje estará na corte do Céu a ouvir “a cotovia”…

Em tal sítio, e com tais patronos, Miguel Real e nós teremos de pensar se não serão os “exílios interiores” e “sentimentos de decadência” condições existenciais benéficas para termos poetas com uma obra do quilate da de Miranda ou de Pessoa. Certeiramente diz ele, Real, que o « esgotamento da realidade histórica chamada “Portugal” » se daria « menos por efeito de um decadentismo político»… - que afinal nos deu Os Lusíadas. O que me traz à lição que prometi tirar na semana passada.

Cifra-se numa ponderável possibilidade: - se, como lembrei, temos vivido desde sempre com a “decadência” e conflituosos “divórcios”, talvez que o maior perigo de “morte” para nós seja… a ausência deles.

Ora é precisamente aqui que os termos da tese do autor começam a tomar vulto de credível ameaça. Se nos “descristianizamos e nos desumanizamos”, se ficamos submersos numa “tecnocracia científica anónima”, se da “nobre arte da política” resta apenas a manipulação electrónica de amorfas multidões e a gestão informatizada de ciclos e contraciclos económicos para ávidos consumidores, - temos para lutar o quê e contra quê?... E é precisamente aqui que assombra o terrível verso duma ode da senhora Marquesa de Alorna, que o autor pôs como epígrafe no seu livro e que ainda talvez veremos na íntegra: a nobre D. Leonor de Almeida bem no merece. Diz apenas isto o verso final do poema, com a terrível maiúscula: « - Ao Nada caminhamos! »

Ora, se ficamos sem nada contra “o Nada”…

Deixemos para já esta sombra niilista, que o nosso diarista Torga agudamente sentiu num certo 22 de Outubro de 1950, como lembraremos no dia próprio. Entretanto, não liquidemos em nada a razão. Há que pensar. Ponhamos também de remissa a tal “arte da política”, que eu não vejo tempo algum em que foi ou possa vir a ser “nobre”. Fixemo-nos aqui: diz o autor que “o que está a chegar ao fim” é a “constelação cultural e civilizacional por que emergiu uma realidade histórica chamada ‘Portugal’.” Este “fim” é um “limite de esgotamento” – e não um “desaparecimento”. Contudo, se a identidade histórico-cultural esgotada é, como ele diz, transformada, não ficamos com “nada”, mas sim uma coisa outra, cujo nome – “Portugal” – pode perdurar como região entre outras duma Ibéria também ela transformada; ou, até, vir a desaparecer gradualmente numa “União Europeia” que só lhe guardará o nome nos arquivos da História. Desaparece o nome que foi o de uma entidade política autónoma. Pode ser até que nesse processo a língua se transforme de tal modo que, no futuro, um linguista só reconheça a língua portuguesa na que encontrará então falada em África ou no Brasil…

Que temos, pois? - Que a língua lusitânica com o tempo se transformou na novilatina portuguesa, e esta se pode transformar num europês qualquer. Que o nome “Portugal” pode ser no futuro uma memória tão longínqua e enigmática como hoje é o nome “Lusitânia”. (E fique a fama de análogo e venerando prestígio!). Assim, o que temos aqui é a ordem normal das coisas neste mundo; a qual, aliás, se tem hoje visos de plausível, nem por isso temos de crer está predeterminada ou é inevitável.

Mas, que temos mais? O que é que, antes de por meados do séc. IX aparecer documentado o nome “Portugal” ( a terra Portugalis, que se estendia entre o Ave e o Vouga) tínhamos aqui neste nosso território? E o que foi feito desses famosos “lusitanos”? E antes da “Lusitânia”, não tínhamos aqui nada nem ninguém? Então e aqueles que, há cerca de 4000 anos a. C. terão de aqui difundido a cultura megalítica e campaniforme até à Irlanda e às Ilhas Britânicas? E os que há 14 000 anos decoravam com finos desenhos o vale do Côa? -

Respondo que tínhamos e temos o mesmo que há 25 000 anos: pessoas. Pessoas que, geração após geração, século após século vão compondo e recompando os associativos e dissociativos laços da convivente sociabilidade. Ou chamem-se “lusitanos”, “portugueses” ou “europeses”, a questão é que sejam mais, e não menos, humanas. E pessoas com talvez uma feição original como já há 25 000 anos era a de um certo menino do Lapedo : um tipo raro de miscigenação do “neanderthal” com o “sapiens sapiens”, que até há pouco nunca tinha sido encontrado.

Respondo que temos os que nascem e vivem ou vieram viver para este canto do continente, uma nação de nativos e migrantes que se forma e transforma com o tempo, na mistura de muitas e diferentes etnias. Uma nação etnicamente tão rica e adaptável, pode dar-se até ao luxo de perder o nome “Portugal” e… - fazer melhor!

Ou não…



[ Devidamente composto para a fotografia, exibe-se o paleolítico esqueleto achado em Novembro de 1998 no lugar do Lagar Velho, vale do Lapedo, Leiria. Um hábil artesão de Hollywood encarregou-se de reconstituir o rosto deste primeiro “português”, que o leitor pode ver aqui: http://forum.g-sat.net/showthread.php?t=121130 ]

Sobre o livro de Real, veja também aqui o leitor interessado as cartas de 2 e 9 de Março do filósofo e guardião português Pinharanda Gomes.




quinta-feira, outubro 02, 2008

"S. Martinho de Anta, 2 de Outubro de 1958"

« Há certos momentos em que apetece desanimar do nosso camponês. É difícil a gente harmonizar as suas imensas virtudes com o emparedamento humano em que se obstina. Irmão gémeo, mas atardado, do proletário, que, embora à custa dum certo desenraizamento, pode aprender nos meios citadinos a exigir das classes dominantes uma progressiva dignificação, não tem, como ele, a mais leve sombra de disponibilidade revolucionária. Resignou-se de tal modo à condição de filho infeliz da vida, de lama da espécie, que não dá, nem quer dar, um passo para além do seu quotidiano sem esperança. Lutar, sim, mas pela couve de que faz o caldo, ou pelo balde de água com que há-de regar a couve. Como um simples bicho instintivo, defende simplesmente o osso que rói. Fora disso, acobarda-se, e regressa sornamente ao comodismo das sujeições presentes. Talvez porque o despojaram sempre, em nome de Deus e de César, apenas vê gadanhas, mais aguçadas ainda, nas mãos do futuro. Um fisco com aperfeiçoados ardis e uma caixa de esmolas com duplicadas bocas. Rotineiro empedernido, qualquer experiência o perturba, e nenhuma aventura verdadeiramente o seduz. Muito rogado ou muito apertado pela necessidade, lá se deixa às vezes convencer a semear na vida uma semente inédita. Mas é quase certo, mormente se os resultados do ensaio não são evidentes à primeira vista, desamparar a insólita novidade antes da desmama. Analfabeto e suspicaz, desconfia da cultura e da força das ideias, agarra-se ao nada que tem com unhas e dentes, e é, paradoxalmente, um pedinte e um reaccionário. »

Miguel Torga, Diário, vol VIII.