quinta-feira, dezembro 31, 2009

CIDADE NOVA



.... graças ao coração misericordioso do nosso Deus,
Que das alturas nos visita como Sol nascente
para iluminar os que jazem nas trevas
e nas sombras da morte
....

Cântico de Zacarias, in Evangelho de Lucas 1, 78-79.


Há poucos dias, no dia em que o mundo velho celebrava o solsticial dia em que o Sol Invictus se reerguia a fazer recuar as invernais sombras, recordámos um Acontecimento difícil de crer e impossível de pensar pela lógica humana, por isso mesmo concebível de acontecer pelo Logos duma divina lógica. E, contudo, de certo modo prefigurado e preparado pela substância de toda a genuína experiência humana do Sagrado, como estudiosos da categoria dum Mircea Eliade não deixaram de notar: de facto, a hierofania, enquanto manifestação neste mundo de alguma causa que não é deste mundo, podia bem ter sido uma prefiguração ou preparação existencial - mais óbvia ainda quando deuses aparentavam figuras humanas, ou homens excepcionais aparentavam actos tão extraordinários que mereciam o nome de “divinos” – do oportuno Acontecimento que os cristãos vimos celebrando anualmente neste (relativamente curto) lapso de tempo de dois mil anos. Mas deuses e heróis humanos divinizados faziam todos parte da Physis, da eterna e incriada essência do Cosmos; e a “eternidade” aqui era concebida como a infinita (no passado e no futuro) processão de ciclos temporais progressivos e regressivos, num perpétuo devir de geração e destruição dos mundos, regido pelo Tempo (Chronos) agenciador dos decretos soberanos do Destino. Mas também aqui, quando um mais “humanizado” Zeus olímpico se rebela e substitui o poder de Chronos, como não ler nisto mais um avanço no desejo humano pela perfeita conciliação numa Pessoa do divino e do humano?... E contudo, segundo a Ilíada (XVI, 440-442), mesmo o próprio Zeus não podia contravir aos decretos do Destino, e a sujeição às leis desta Necessidade (Anánkê) “natural” perdurou com irrevogável vigor até finado o velho Mundo Antigo.


Que o Deus transcendente, criador do universo e dominador do tempo foi capaz de nascer menino duma mulher virgem, ser o verdadeiro homem e Deus connosco – o Emanuel – neste nosso mundo velho, desfigurado e ferido de morte, - eis o Acontecimento extraordinário que nos comove a dobrar os joelhos, abraçar a terra e adorar ao Céu, com a multidão dos Anjos que o aceitaram e no-lo deram primeiro a conhecer.


E o primeiro entre os humanos a quem foi dado a conhecer o milagre inaudito e para sempre inolvidável – foi uma mulher. Foi por causa de Maria, que assentiu contra toda a evidência naturalista, que a Virgem e Mãe pôde (e pode!) ser a matricial origem de um Filho do Homem novo – um Novo Adão -, e dos mais filhos da mulher que neste mundo mortal cressem e quisessem renascer do alto para a verdadeira vida de filhos de Deus. E isto aconteceu numa obscura cidade da galileia palestinense, tão humilde e obscura que alguns hoje chegaram a duvidar fosse habitada ou sequer existisse...


Depois de seu noivo, José, que a não quis repudiar, entre os primeiros humanos a quem foi revelada a grande Novidade estavam pastores. Naquele tempo e sociedade, eram os pastores uma categoria social das mais desconsideradas e de mais baixo estatuto: eram como marginais, gente de pouca instrução e religião, roubando terras de cultura para pastagens e vivendo em contacto com animais “impuros”. Outros, não menos marginais à sociedade israelita, eram uns magos do Oriente, a que uma veneranda tradição popular veio a chamar “reis”. Os sábios da sabedoria das nações criam poder ler nas configurações astrais os decretos do Destino, as leis da Natureza que regiam os movimentos dos céus e os da vida na terra; e os da vida política dos reinos da terra submetiam seus decretos à horoscopia cuidadosa dos momentos fastos ou nefastos dos decretos celestes. O evangelho cristão de Mateus pode significar-nos que tal sabedoria não era necessariamente ilusória, uma vez que foram esses altos dignitários de reinos estrangeiros os primeiros a reconhecer a realeza do Messias e Rei dos Judeus recém-nascido. A reconhecerem-No e a submeterem-se-Lhe, com os simbólicos presentes que lhe ofereceram. Mas significa-nos também que o poder político local, vassalo do César romano, não se submeteu – mas se revelou tal qual é neste mundo à Luz da Verdade que vinha ao mundo: Herodes simula querer também adorar o Menino; mas, por sua vez enganado pelos magos, decreta o homicídio indiscriminado de inocentes, a ver se acertava em matar o Rei que julgava vir disputar-lhe o trono; ao tão conservador e cioso dele que chegou a tornar-se matador de três dos seu próprios filhos. Eis o símbolo vivo e dramático duma radical diferença existencial, reflectida no tempo (para todos os tempos): entre o Reino de Deus trazido e aberto no mundo pelo próprio Deus Menino – e os potentados políticos sustentados na mentira e no homicídio, cujo principado temporal de facto era daquele que Jesus denunciou como pai da mentira e homicida desde o princípio. (No evangelho de Lucas o símbolo é mais atenuado: fala-se de um recenseamento de todo o mundo habitado por efeito de um edito de César Augusto. Ora, no Antigo Testamento, os recenseamentos eram actos especialmente temerários, que, na falta de segura caução divina, chegaram a ser imputados a Satã.)


Uma mulher nova, que livremente aceitou conceber o humanamente inconcebível – a Mãe de Deus e de todos os homens novos filhos do verdadeiro homem, Jesus, e filhos de Deus -, Maria, a mais santa entre todos os santos, - exposta pela duração dos séculos, até ao fim do tempo à suspeita e ao repúdio que tentaram a benignidade de seu humano esposo, José. Um operário carpinteiro, que soube calar os protestos da honra macha sob palavra dos Anunciadores, e ousou acreditar; e acreditando, foi cumulado da maior honra que a um homem podia ser dada – o próprio Deus menino aprendendo de um homem e praticando seu ofício (até àquela idade em que todos os homens, quando bem educados, devemos entender que nem só de pão vive o homem). Uns pobres (ou remediados) pescadores, que largam seus barcos para embarcar na grande Aventura com o divino Pescador e Salvador dos naufragados humanos que queiram subir a salvo para a Barca. As mulheres, as santas mulheres que assistiram na construção dela nas praias da Galileia; que depois resistiram (elas só!) ao embate nas rochas da Judeia e à elevação dela como ensanguentado e vergonhoso Lenho, que Deus houvesse abandonado; por isso talvez as primeiras a merecerem ter notícia da Vida sem mais túmulo nem cadáver. Depois os primeiros que viram e acreditaram, e aceitaram retomar a crucífera Barca e ir a recolher todos os mais, que na procelosa sucessão dos séculos acreditarem e, no fim do tempo, claramente verão à mais clara Luz todo o sentido da terrífica e marvilhosa viagem... E esses primeiros nautas (ou pastores) não demoraram a apontar e rumar a Roma...

Eram uma comum e pobre gente de carpinteiros, pescadores, cordoeiros, tecedeiras, tendeiros, escravos, viúvas, alguns jovens “românticos” apaixonados e decididos por um Amor absoluto, livre das relações relativas à velha natureza seccionada e sexuada, fazendo a paz entre os sexos como entre judeus e gentios; em breve até se lhes juntariam alguns filósofos... E é por obra e graça deles que a nós hoje nos custa imaginar as abissais diferenças de condição e consideração social que havia entre classes. Gente sem importância nem categoria nenhumas, que aportava ao coração do Império e nele ancorava uma Cidade Nova.

Temos um resultado inicial e parcial espantoso assalto desta gente de paz que levantava a ígnea espada de Cristo sobre a capital-cabeça do César: os denominados e denunciados “cristãos” pendidos como tochas vivas alumiando a Roma em cinzas, e um Lenho ensanguentado a levantar-se no alto da colina do Vaticano, sobre as ruínas do templo de Júpiter...

Mas a luta ainda ainda não terminou. Quando assentar o pó sobre a “Cristandade” (ocidental), reguladas as últimas contas com o Império, ver-se-á melhor a Igreja universal e peregrina de todos os tempos, terminado o tempo. Não à luz dos nossos olhos cegos, mas aos do Pescador divino que recolhe e contará os seus na Nova Jerusalém.

[ Em itálico, as expressões que merecem melhor reparo e a ênfase devida.
A fotografia, titulada “Sarça”, é de Rodion Yefymov. ]

quarta-feira, dezembro 30, 2009

O DIÁRIO DE NOAGA


30 de Dezembro

«O meu irmão mais velho tem uma bicicleta. Ele é mesmo bom e generoso, pois leva-nos a todos a passear em cima dela. »

sexta-feira, dezembro 25, 2009

AMOR PERFEITO


Ó meu menino Jesus
Ó meu lindo amor perfeito
Se vós tendes frio frio
Vinde cá para o meu peito.

Do varão nasceu a vara
Da vara nasceu a flor
Duma flor nasceu maria
De Maria o Salvador.

Entrai pastores entrai
Por esses portais adentro
Vinde adorar o Menino
No seu santo Nascimento.

Pastorinhas do deserto
Vinde todas vinde a ver
A pobreza da lapinha
Onde Cristo veio nascer.

Alegre-se o céu e a terra
Cantemos com alegria
Que já nasceu o Menino
Filho da Virgem Maria.


[Do cancioneiro popular: versão de Monsanto, Beira Baixa. ]
ORAÇÃO

Menino Jesus
Da minha afeição
Vesti-me de luz
O meu coração.

Vesti-me de luz
Vesti-me de luar
Menino Jesus
Amor do meu lar.

Vesti-me de luz
A minha oração
Menino Jesus
Do meu coração.


[ Do cancioneiro popular: Rochoso, Guarda. ]

Antífona de entrada da missa do dia de Natal, pelos monges beneditinos do mosteiro de Santo Domingo de Silos.

Texto extraído do livro de Isaías, 9, 6 e do Salmo 97,1:

Puer natus est nobis
Et Filius datus est nobis
Cuius imperium super humerum eius
Et vocabitur nomem eius
Magni consilii Angelus.

Cantate Domino canticum novum
Quia mirabilia fecit.

quinta-feira, dezembro 24, 2009

NATAL, 1966


Contava Ruy Cinatti a propósito do seu dia 25 de Dezembro de 1966, que foi um domingo:

« Ontem, dia de Natal, resolvi não jantar com ninguém. Vim para casa ao cair da noite. A minha intenção foi, entre outras, comungar humanamente com todos os indivíduos que no mundo passaram a noite de Natal sozinhos, longe de amigos ou famílias. »

Não passou sem a companhia da Poesia, e o presente que teve foi este:

Senhor, tu nasceste neste dia
e eu aqui estou, nascido no mesmo dia.
Apetece-me brincar com as palhinhas.
Pousar o dedo no boi, digo, no beiço,
no focinho do boi, senti-lo húmido
da língua que o lambe.
Depois levá-lo à boca para saber
a que sabe.
Lembrando o que há tanto tempo sucedeu,
quando um boi, um dia,
me lambeu a face,
de relance na boca.

Sal, apenas sal, queríamos nós.
O boi e eu.
Cloreto de sódio, símbolo
como aprendi no liceu.

Senhor, estamos tão sós
que até um boi nos valia.

Senhor, tu nasceste neste dia
e eu aqui estou
à espera que me dês o sal
Da tua boca.

O boi lambeu-me.

Obrigado, Senhor!


[ O poema saiu dois anos depois no livro Tédio Recompensado. Traz no título o símbolo químico do sal – “NaCl-Natal-1966” - e como epígrafe um verso de Apollinaire: “Les chérubins sont des boeufs ailés.” A meu ver, o símbolo químico tem um verso, não precisa de mais ênfase no título; que a experiência, englobando sim as várias de menino, é doutra natureza. O símbolo dos querubins alados na epígrafe, da tradição veterotestamentária do profeta Ezequiel, prejudica a Novidade em questão: os animais e a animalidade biológica restaurada e bem entendida com o Cordeiro (como no paraíso os animais bem se entendiam com os humanos tais quais éramos criados por Deus), - agora despidinho nas palhinhas como Alimento novo da humanidade nova. Os anjos assistem e louvam, não são protagonistas. Escusado será dizer que Cinatti, poeta cristão, nasceu na verdade neste dia, e não no que falsamente exibia o bilhete civil. O leitor interessado em informar-se com a minúcia e profundidade possíveis sobre as contingências extraordinárias que rodearam este parto de 1966, que daria treze livros de poemas só nos quatro anos seguintes, não tem mais que ler as páginas 314-332 da obra fundamental A Condição Humana em Ruy Cinatti (1995), de Peter Stilwell. Este chama “implosão espiritual” às extraordinárias circunstâncias e frutos com que esta condição foi cumulada por esses dias na pessoa do nosso Poeta. ]

quarta-feira, dezembro 23, 2009

AO NASCIMENTO DE JESUS

Amor sublime, eterno, incompreensível,
Amor que o torpe amor converte em puro;
Amor que ao duvidoso faz seguro
Amor que tudo vê, sendo invisível.

Amor que faz suave ao insofrível,
Amor que mostra claro o que era escuro;
Amor que faz mais brando o que é mais duro,
Amor que facilita ao impossível,

Amor que tudo vence e tudo apura.
O homem com seu Deus pacificando
Quis que este Deus ao homem se juntasse;

E, junto o Criador com a criatura,
Que a criatura em Deus ficasse amando
E Deus nas criaturas sempre amasse.



Baltasar Estaço (1570-16??)

terça-feira, dezembro 22, 2009

BELEZA MAIOR

Dos Céus à terra desce a mor Beleza,
Une-se à nossa carne e fá-la nobre;
E sendo a humanidade dantes pobre
Hoje subida fica à mor alteza.


Busca o Senhor mais rico a mor pobreza;
Que como ao mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre
E por elas o mesmo Céu despreza.


Como? Deus em pobreza à terra desce?
O que é mais pobre tanto lhe contenta,
Que isto somente rico lhe parece.


Pobreza este Presépio representa;
Mas tanto por ser pobre já merece,
Que quanto mais o é, mais lhe contenta.



Luís de Camões

segunda-feira, dezembro 21, 2009

CANTIGA AO AMIGO

Menino Jesus
Tanto meu amigo
Foi-se ao outro dia
Sem falar comigo.

Lá leva consigo
Minhas saudades
Como passarei
Cá por estes vales?

Cá por estes vales
Sozinho sem Ele?
Passarei meus tempos
Chorando por Ele.



[ Cantiga recolhida por Afonso Duarte no Santuário da Lapa, em Sernancelhe, Viseu. O poeta incluiu-a depois, com o título “Cantiga de Amigo”, no por si organizado O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa (1936). ]

quinta-feira, dezembro 17, 2009

JOSÉ RÉGIO (1901-1969)


« Ser santo era a minha secreta e mais poderosa aspiração. Mas eu não conseguia ser santo, nunca o conseguiria! Era uma vocação sem dom.

(...)

« Falo da insuficiência ou fragilidade da minha vocação mística, ousando aqui a mais paradoxal das observações; a mais inconcebível das minhas contradições: pois do mesmo passo a sentia eu minha vocação suprema, - e ao senti-la tinha por secundária a vocação artística, - e não podia deixar de me reconhecer um místico deficientíssimo ou frustrado: Longos e frequentes eram os intervalos na minha vida religiosa, ou por longos períodos me acomodava eu perfeitamente com a minha quase indiferença, frieza ou secura perante as coisas divinas. Pouco dizem estas palavras do que pretenderia eu dizer, e nem o exemplo de Antero ( a quem, por vezes, recorria como a um companheiro de des-graça [sic] ) me chegava a parecer idêntico. “Preciso de Deus! Nasci para Deus!” gritava às vezes comigo, “mas não alcanço a graça...” E ao mesmo tempo que parecia inegável tal necessidade de Deus – não era esta tão premente que a ausência de Deus me não deixasse ir suportando a vida com relativa facilidade, às vezes com grata satisfação.
(...)

« Cumpre sabermos, e lealmente o declararmos, que místico é aquele que tem necessidade de um Desus que exista; com quem possa entrar em comunicação. Ou antes: místico é aquele que, não obstante todas e quaisquer suas dúvidas, tem a certeza ou experiência íntima de esse Deus. Podem os não-místicos acomodar-se com a sua ideia (pois afinal é uma ideia!) de um Deus incognoscível, incomunicável, inconcebível, e ridicularizar ou desprezar o pequeno Deus humano dos outros. E podem viver tranquilos e satisfeitos com o que supõem ser uma sua superioridade. Como poderia um místico viver tranquilo e satisfeito com isso? Para um místico, toda a sua vida mortal e toda a sua vida imortal, toda a sua felicidade terrena e toda a sua aspiração a uma felicidade eterna, estão implicadas na questão... E falando em necessidade, bem vejo como à primeira vista pareço dar razão aos que supõem os deuses inventados pelas necessidades dos homens; isto é: pela sua necessidade de protecção, de apoio, de recurso, - de apelo para uma Força que os abrigue contra os seus medos, para uma Inteligência em que descansem as suas perplexidades, para um Amor que os compense das suas decepções, para uma Eternidade que responda à sua vontade de sobrevivência... Ora sem dúvida, esta interpretação simplista, realista, psico-fisiologicista, do fenómeno religioso, - vê, do lado do homem e do ponto de vista psicológico, um aspecto da grande questão. A meus próprios olhos era eu bom exemplo da justeza parcial dessas vistas de não crentes. Como não ver-me eu próprio cheio de ignorância e medos, por esse lado necessitado de um Pai omnisciente e omnipotente ? Como não ver-me, além de isso, dotado de faculdades superiores mas incompletas, inquietantes, e que aspiravam a uma concretização delas numa Perfeição viva para além de mim, todavia comunicante ? Para um não-crente poderia bastar isto – e a isto se poderiam juntar outras observações – a justificar a invenção de deuses. Para um místico, mesmo tão dúbio, tíbio, imperfeito como eu, essa pobre psicologia parecia como realmente pobre, e até qualquer metapsíquica (como a metafísica) incipiente e jamais bastante. Aqueles explicadores eram descrentes de Deus, e crentes na sua pequema ciência. Eu cria em Deus mesmo não crendo; e até compartilhando, em certos momentos, de aquela “sua pequena ciência”.

(...)

« A mim me bastaria decerto a própria certeza íntima, subjectiva, da minha religiosidade. Com todos os vaivéns, flutuações, contradições, incoerências, ambiguidades, perplexidades em que me debatia, e procurei descrever ou sugerir em capítulos anteriores, - eu não podia deixar de crer. E se igualmente eu não podia crer, muito me inclinava a crer que apesar de tudo cria da maneira que me era possível ser crente. O crer-não crendo era portanto a minha posição ao mesmo tempo subterrânea e supraterrânea, obscura e sobrepairante. Esta expressão de crer-não crendo me parecia a que mais rigorosamente exprimia o meu caso. Que melhor testemunha ou prova poderia eu achar da minha vocação mística (ousava! ousava até pensar secretamente que da própria existência de Deus) que essa persistência da fé apesar da descrença ? »
[Itálicos do autor.]

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« O medo de não chegar a terminar esta obra, para mim de importância capital....», dizia o Poeta, quando em 1969 se dava pressa de terminar a sua Confissão dum Homem Religioso.

A obra principiou-lhe a “ferver” em 1947 (o ano da publicação de Benilde ou A Virgem Mãe) e começou a verter-se em expressão escrita no Verão de 1953. Retomou-a em 1960. Em 1968, já regressado em definitivo à sua Vila do Conde natal, determinou-se a rever e a colher completo o que tinha como “fruto maduro em seu espírito”. - «Calculara ter acabada a primeira redacção da obra em Abril de 1969. Escrevia com uma premência e ansiedade tais que parecia estar a prever o seu próximo fim» - como diz o íntimo amigo seu Orlando Taipa. Escrevia e reescrevia. Mas ainda nada do último capítulo da obra, que resolvera intitular “Religião para Sempre”, e que deixara para quando o resto do livro estivesse pronto para impressão. Seria o décimo capítulo, culminando a escada de nove, cujo primeiro era “O Meio Familiar” e o nono “A Vocação Mística”. Entretanto, escrevia um novo e longo “Posfácio” para a novel edição do seu primeiro livro de poesia - Poemas de Deus e do Diabo -, que ficou como uma final confissão literária dum homem escritor.

A 9 de Outubro, regressando do Porto, foi acometido por um enfarte cardíaco, e não mais pôde trabalhar. Assim ficou por assentar o fecho da abóbada dum livro de importância capital para todos nós. Mas os portugueses das Capelas Imperfeitas sempre confessaram saber Quem dá a última demão nas batalhadas obras humanas.

No In Memoriam que no ano seguinte amigos e companheiros de luta lhe dedicaram, o poeta Alberto de Serpa, o “camarada e amigo de sempre” a quem Régio dedicou o seu último livro de poesia – Cântico Suspenso (1968) -, escrevia esta...

LEMBRANÇA
Pouso a mão nas tuas. Que frias!
Que de marfim estão os dedos teus,
Como o Cristo que seguiu tuas finais agruras!

Não mais poemas que escrevias.
Agora, só os versos que vais dizer a Deus,
Medidos no rosário que seguras.

segunda-feira, dezembro 14, 2009

PROJECT NATAL


É este o “codename” de um novo interface para videojogos que está a ser afinado por uma conhecida empresa informática norte-americana, há alguns anos entrada a disputar neste mercado a liderança japonesa. O leitor fique descansado, que para o utilizar não precisa de pôr a linda coiffure que aparece na fotografia supra, tirada numa recente feira de robótica em Tóquio. Para jogar o novo pacote de jogos nem precisa de treinar os dedinhos frenéticos nalgum telecomando: não é preciso nenhum. Basta-lhe apenas ligar a nova câmara 3D à consola da marca e pôr-se diante dela. A câmara tem sensores de infravermelhos que tiram o “retrato” ao leitor, a mais três ou quatro pessoas que apareçam ao lado si, ao mobiliário e dimensões da sala em que está e a vários objectos em que pegue ou vá buscar. Depois, é só falar para os bonecos que, na tela, falam consigo, ouvem o que o leitor lhes diz e lhe respondem. Diz-se até que são sensíveis à expressão de emoções. Num pequeno filme promocional de um dos jogos, temos uma amostra do espectáculo que nos espera e da figura que nos convidam a fazer. Noutros desta nova série, o utilizador salta, corre, estira-se no chão, dá pontapés (no ar), e vê diante si o boneco fazer a mesmíssima coisa num emocionante desafio de futebol. Lindo.
O “codename”, alegadamente dado por um dos engenheiros que trabalham no Projecto e é brasileiro natural duma cidade com aquele nome, cifra-se noutra interpretação, a da empresa proprietária: - “É o nascimento duma nova dimensão nas dimensões do entretenimento”. Será. Na minha linguagem, decifra-se assim: é uma nova dimensão no assalto à privacidade do consumidor, com a instalação “amigável” e brincalhona de uma câmara de videovigilância doméstica, a completar com a generalização próxima da televisão digital interactiva. E lá virá o dia em que o consumidor divertido e distraído (mais os seus familiares e convivas) terá no Banco digital longe de si um ficheiro guardado de todos os seus dados biométricos, prontos para a replicação integral do seu organismo no ciberespaço, para jogar lá, com os outros bonecos, aliás cada vez mais parecidos com o telejogador. Quem diz jogar, diz fazer muitas outras coisas interessantes, atraentes e irresistíveis. Tudo muito divertido, é claro, e sem lhe custar esforço, perigo, responsabilidade nenhumas.
Mas, caro leitor, já está a ver: chegará o momento em que o consumidor viciado desejará algo mais forte. Desejará sentir o mais possível o ambiente cada vez mais natural e “realista” que lhe pintam diante o olhar seduzido, o juízo descabelado e a vontade submetida. Então, talvez tenha mesmo de enfiar aquela cabeleira eriçada de sensores (e estimuladores) da sua actividade cerebral, que lhe há-de pentear o juízo. Mas vale a pena, porque o seu duplo digitalizado, cada vez mais parecido consigo, pode ser uma imagem muito melhorada de si e... melhorada por si, segundo o seu “ideal”. Poderá mesmo mudar de sexo (ou ter ambos), sem custosas e perigosas cirurgias, quantas vezes quiser. E, contra a cedência dumas tantas fotografias do seu álbum de família, pode “rejuvenescer” e reviver nos ambientes da sua juventude, reencontrar-se com os seus entes queridos falecidos... Irresistível!
Por um lado, há que manter entretida a maioria dos cidadãos que, no próximo futuro, será a de desempregados ociosos e viciados neste e em todo o tipo de drogas, cada vez mais imbecilizados e desumanizados, sobrevivendo dum qualquer rendimento social de manutenção, pequenos biscates de ocasião ou dum empreendedorismo privado estritamente controlado e de curto alcance. Por outro lado, e mais sinistro, teríamos agora de nos voltar para os laboratórios das “biotecnologias” e das “clínicas de fertilidade”, aonde se farão as ligações “naturais” aos operadores manipuladores do telecomando das telecomunicações e dos mass media. É por aí, com a devida supervisão policial e militar, que os magos volvidos de adoradores em adorados estão a tratar duma certa “Natividade”...
Tais são as prendas do novo Pai Natal que se apresta para entrar (e instalar-se) na casa dos consumidores, que nos últimos anos têm andado a chamá-lo e a convidá-lo colocando no exterior dos seus prédios bonecos salteadores de varandas e janelas. Para já, bem excitado pela propaganda, o consumidor ávido terá de reprimir as ânsias e esperar até cerca do Natal de 2010 para correr a comprar a câmara e os jogos, e veremos se não terá de comprar também uma nova consola. Esperemos que na corrida a comprar e experimentar o brinquedo, ao menos não atropelem nem matem ninguém. Como aconteceu fez agora um ano, nessa mesma Wonderland dos grandes sonhos lindos (e dos grandes pesadelos), no dia dos imbatíveis descontos e promoções na abertura da Christmas Season. Numa loja de certa famosa cadeia de super-mercados, a pressão da multidão impaciente sobre os vidros do estabelecimento foi tal, que os rebentaram: e as as hordas desembestam por ele adentro, derrubam, espezinham, sufocam e mataram um pobre funcionário que se lhes atravessou na frente. Estes possessos estão prontos para o circo de feras e de fogo que se está a armar.
Meu jovem e caro amigo: - Será capaz de andar por si sobre um fio de arame, sem Rede?...

[ Aqui está o filme referido acima, apresentado por um responsável do Projecto, conhecido designer e promotor de jogos:
Tudo muito bonitinho, muito inocente e bem-comportadinho. Tudo repulsivamente distorcido, desde o estarem adiante da “ficção científica”, quando vão atrás do que já é há anos corrente em tecnologias de “realidade aumentada” e “realidade virtual” usadas em centros de investigação (e treino) militares e académicos, até à sugestão de que os bonecos têm personalidade e são susceptíveis duma relação interpessoal. É a “real magic” da sempre a mesma real propaganda. ]

quarta-feira, dezembro 09, 2009

UMA “OLIGARQUIA TECNICAMENTE TREINADA”



Nenhuma sociedade decente pode tolerar a exploração dos seus membros vulneráveis. Quando essa exploração é efectuada em nome da defesa nacional há algo de podre no coração da cultura política dessa sociedade.

Jonathan B. Moreno


« A partir de 1951, e durante doze anos, as autoridades militares norte-americanas realizaram no estado do Nevada mais de uma centena de deflagrações experimentais com bombas atómicas. Os efeitos fizeram-se sentir sobre pessoas e animais numa faixa de território que alcançou o estado da Nova Inglaterra, na costa leste, atravessando praticamente o país de um lado a outro. Ao longo de todo esse período, milhares de soldados receberam ordem para efectuar exercícios de combate pouco depois de as explosões terem ocorrido e na imediata proximidade do lugar de deflagração, e do mesmo modo centenas de operários dos serviços de manutenção do centro de testes foram deliberadamente expostos a doses altíssimas de radiações. Tanto entre os soldados e os operários como entre os habitantes das zonas mais afectadas começaram a verificar-se percentagens de cancro muitíssimo elevadas. As autoridades, porém, não só mantiveram o silêncio sobre o que se passava, como organizaram uma verdadeira campanha de informações falsas, prevenindo, por exemplo, os soldados de que o perigo provinha da exposição aos raios solares e não das radiações atómicas. E ao sabermos que mulheres residentes em povoações atingidas por nuvens radioactivas se dirigiram aos hospitais locais com sintomas como queda de cabelo e queimaduras na pele, só para serem mandadas de regresso ao lar com o diagnóstico de “neurose” e de “síndroma das donas de casa”, temos de concluir que houve médicos a participar na campanha de desinformação.

« Com efeito, numerosos médicos e cientistas dos centros académicos mais reputados colaboraram com a Comissão para a Energia Atómica, o departamento oficial então encarregado de superintender as questões deste tipo, para em conjunto realizarem experiências, deixando as cobaias humanas na ignorância do que verdadeiramente se passava. Entre 1945 e 1947, por exemplo, dezoito doentes receberam, sem o saber, injecções de plutónio, e este tipo de actividade científica foi continuado pela Universidade de Colúmbia ao longo da década de 1950. Pela mesma altura, numa experiência que ocorreu também sob a égide da Comissão para a Energia Atómica e foi realizada por cientistas da Universidade de Harvard e do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT), as crianças sofrendo de atraso mental que frequentavam uma dada escola especializada foram sistematicamente alimentadas com leite radioactivo e receberam injecções de substâncias radioactivas, para que os peritos pudessem estudar as alterações provocadas no metabolismo. Mais tarde, na primeira metade da década de 1970, um dos laboratórios da Comissão para a Energia Atómica utilizava nas suas experiências cerca de duzentos doentes com cancro, expondo-os, sem os prevenir, a níveis de radiação muitíssimo elevados. »

Citei dois parágrafos do importante livro de João Bernardo, Os Labirintos do Fascismo (2003), que várias vezes aqui lembrámos, confrontando o nosso Tonel com a Gaiola de Skinner . As coisas não começaram em 1951, não terminaram na década de 70 e muito menos sucederam apenas os casos citados. O penúltimo do texto é particularmente sugestivo e exemplarmente repugnante. Não se deu em uma mas sim duas escolas-internato, de Fernald e Wrentham, no Massachusetts, e os abusos sobre as crianças descritas como “atrasadas mentais” prolongaram-se por vinte e nove anos, entre 1946 e 1973. Começaram com o pretexto de “estudos sobre nutrição”, e foram patrocinados pela Quaker Oats Company. As crianças foram alimentadas ao pequeno-almoço com cereais e leite que continha traçadores radioactivos, para se ver como o corpo absorvia o ferro e o cálcio dos cereais. A Quaker Oats queria por seu lado “demonstrar” que os nutrientes dos seus cereais percorriam todo o corpo, e ganhar a ofensiva de publicidade conduzida contra a firma concorrente da Cream of Wheat. As experiências deram pelo menos seis artigos científicos, publicados com omissão da identidade dos sujeitos da experimentação e da forma do seu recrutamento; e custaram, em 1997, quase dois milhões de dólares de indemnizações por parte da Quaker e do MIT a cerca de trinta alunos vítimas delas.

Este e muitos outros casos, cobrindo um arco temporal que vai do pós-1ª Guerra Mundial até depois da primeira invasão do Iraque em 1991, são descritos e analisados na obra de Jonathan B. Moreno – Riscos Imorais. Experiências Secretas Governamentais com Seres Humanos (trad. port. de J. Santos Tavares, 2000). O autor fez parte da Comissão Consultora sobre Experiências com Radiações em Seres Humanos que foi criada em 1994 pelo presidente Bill Clinton, e que apresentou um vasto relatório da investigação feita em 1995. O livro beneficia dos resultados dessa investigação, que o autor amplia aos testes secretos feitos também com agentes para armas químicas e biológicas, não deixando de enquadrar os casos no contexto do código ético emergente dos julgamentos de Nuremberga (1946-47). Jonathan Moreno está em posição privilegiada para o fazer, como professor de Ética Médica na Universidade da Pensilvânia e autor com várias obras publicadas no âmbito dessa disciplina e da bioética em geral; sob este ponto de vista o livro traduzido entre nós é um manancial precioso de informação (e de preocupação!) para o estudante e o cidadão interessados.

Enquanto nos julgamentos dos médicos nazis em Nuremberga se fixavam os princípios éticos fundamentais a observar nas práticas de experimentação em seres humanos - entre os quais, como se dizia na sessão de 14 de Julho de 1947, estava o de que « as pessoas se apresentem como voluntárias para as experiências depois de terem sido informadas acerca da sua natureza e dos seus riscos », princípio que mais tarde viria a ser conhecido por “consentimento informado” -, decorria a bom ritmo o Projecto Paperclip. Sob o alto patrocínio da junta de chefes do Estado Maior das forças armadas norte-americanas e dos seus serviços de informações, eram procurados e transferidos para os Estados Unidos quantos cientistas nazis interessassem ao desenvolvimento do complexo industrial-militar americano; ora este Projecto não terminou em Setembro de 1947, como foi oficialmente declarado por um dos envolvidos nele, mas prolongou-se... até 1973 (tal a data na trad. port., mas deve ser antes 1953). Abrangeu cerca de 1 600 cientistas e vários milhares de familiares acompanhantes. Quantos desses cientistas estariam sob a alçada do decreto do presidente Truman, que expressamente impedia a entrada nos Estados Unidos de todos os que tivessem estado ligados ao aparelho de guerra e repressão nazi, não se sabe ao certo, porque os serviços de informação militares da JIOA (Joint Intelligence Objectives Agency), que superintendiam no Projecto, trataram de preencher os ficheiros de maneira a “descansar” todas as alegadas preocupações manifestadas então pelos departamentos de Estado e de Justiça, bem como pelo FBI, acerca do caso. No cap. 4 da obra citada de Jonathan Moreno (significativamente titulado “Acordos com o Diabo”), o leitor pode apreciar a narrativa exemplar de como a burocracia do complexo militar soube iludir e tornar letra morta a letra publicada e publicitada duma ordem do presidente dos Estados Unidos. Aqui, como sempre, tudo em nome dos supremos interesses da “segurança nacional”. Enquanto decorria a operação Paperclip (mas não sei se directamente no âmbito dela), o general Reinhard Gehlen, chefe da espionagem nazi para o leste europeu, que se entregara às tropas americanas com toda a vasta informação que a sua rede de colaboradores e torcionários colhera sobre as tropas soviéticas, colaborava com o sr. Allen Dulles e outros na criação da CIA. Já aqui tive ocasião de me referir a este órgão da multiforme “intelligence community” norte-americana, que mereceu ser chamado de “Governo Invisível” por investigadores (americanos) moderados e informados. Terminado o serviço, e sem mais préstimo para os seus protectores, Gehlen voltou tranquilamente em 1949 para a Alemanha a montar e dirigir os serviços de informação da novel República Federal.

Poucos anos passados, em 1953, o secretário da Defesa Charles Erwin Wilson, na administração do presidente Eisenhower, aprovava um documento do Conselho de Política Médica das Forças Armadas recomendando que a experimentação com seres humanos fosse feita “ao abrigo de reconhecidas salvaguardas”, evocando expressamente os princípios de Nuremberga. Mas o “Memorando Wilson”, como ficou conhecido, foi classificado como... “top secret”(!) - e um dos pontos mais instrutivos do livro de Jonathan Moreno (pp. 229 e sgs.) é patentear ao leitor como as intenções expressas do do documento foram ao longo dos anos sucessivamente ignoradas ou sofismadas pelo complexo militar-industrial e académico. E continuou tudo na mesma: nos finais dessa década de 50 (e até 1972), na escola “para crianças e adolescentes profundamente incapacitadas” de Willowbrook, Nova Iorque, maioritariamente negras e hispânicas, uma equipa médica da universidade desta cidade inoculava vírus da hepatite nas crianças, em experimentações financiadas com fundos do Conselho de Epidemiologia das Forças Armadas...


Na noite de 17 de Janeiro de 1961, no discurso de despedida do segundo mandato da presidência, que endereçou aos seus “fellow americans”, o presidente Dwight Eisenhower saiu com um discurso cheio de actualidade (julgo que foi a primeira vez que um político de alto coturno se referiu a “electronic computers”) , - e não menos de muito lúcidas e previdentes advertências quanto ao futuro. Merecem um destaque especial.



[ Entretanto, o leitor interessado tem aqui, em inglês, uma cronologia dos principais casos publicamente conhecidos na Norte-América, até recentemente:


http://www.ahrp.org/history/chronology.php

É uma listagem que nos deixa ver bem a natureza da Tecnociência, promotora e serventuária do industrialismo capitalista poluidor do mundo e envenenador do homem.
A imagem reproduz um quadro a lápis e aguarela de William Blake, titulada The Red Dragon and the Beast of the Sea, 1805. O grande visionário inglês foi um dos primeiros que viram bem, denunciaram e resistiram. ]

OUTRO AVISO



« (...) A nossa organização militar de hoje tem pouco a ver com a que foi conhecida pelos meus predecessores no tempo de paz, ou mesmo pelos combatentes da Segunda Guerra ou da guerra da Coreia. Até ao último dos conflitos mundiais, os Estados Unidos não tinham uma indústria de armamento. Os nossos armeiros americanos podiam, conforme a ocasião e as necessidades, até fazer espadas também. Mas agora não podemos mais arriscar improvisações de emergência na nossa defesa nacional.

Fomos obrigados a criar uma indústria de armamento permanente e de vastas proporções. Acresce a isto o facto de termos meio milhão de homens e mulheres directamente empenhados no nosso sistema de defesa. Gastamos anualmente em segurança militar mais do que o rendimento bruto de todas as empresas dos Estados Unidos.

Esta conjunção de um imenso organismo militar e de uma grande indústria de armas é nova na vida americana. A influência conjunta disto – económica, política, até espiritual – é sentida em todas as cidades, em todos os governos estaduais e no governo Federal. Reconhecemos a necessidade imperativa desse desenvolvimento. Contudo, não podemos renunciar a entender as suas graves implicações. Os nossos lares, recursos e qualidade de vida estão todos implicados nessa situação, tal como o está a própria estrutura da nossa sociedade.

Nos órgãos do governo, devemos ficar em guarda contra a obtenção de uma influência sem caução, prevista ou imprevista, adquirida pelo complexo militar-industrial. O potencial para o emergir dum poder mal orientado já existe e persistirá. Nunca devemos deixar que o peso desta conjunção faça perigar as liberdades e os métodos democráticos. Não devemos ter nada por garantido. Somente uma cidadania informada e alerta pode obrigar à coordenação de um enorme aparelho industrial e militar de defesa com os nossos métodos e finalidades de paz, para que a segurança e a liberdade prosperem juntas.

(...)

« A possibilidade de domínio do trabalho dos investigadores americanos pelos organismos federais, pela consignação de projectos de investigação e pelo poder do dinheiro, é uma possibilidade sempre presente – e por de mais grave para ser ignorada. Mas inversamente, apoiando a pesquisa e a descoberta científicas, como devemos, também teremos de ficar atentos ao igual perigo de a política pública vir a ficar cativa de uma elite científico-tecnológica. (...) »


Dwight D. Einsenhower


[ O que era há 50 anos previsível tornou-se a simbiótica convivência e conivência normal de hoje.]

quinta-feira, dezembro 03, 2009

O PODER E O FORMIGUEIRO



« O conceito fundamental das ciências sociais é o Poder. »


Na “Nota Introdutória” que escreveu para a edição inglesa de 1990 de Power. A New Social Analysis (1938), dizia Karl Popper ao historiador da Filosofia Bryan Magee que esse título era, na sua opinião, o melhor livro de Bertrand Russell, afora o magnum opus Principia Mathematica (1910, em co-autoria com Alfred N. Whitehead). E respondia-lhe Magee que se dava a coincidência de ele ter posto a mesma pergunta a Russell e ter obtido do próprio a mesma resposta. Esta obra preferida por dois dos maiores filósofos do séc. XX está disponível em língua portuguesa desde 1993, e a epígrafe supra pertence ao cap. I da mesma: « Ao longo deste livro preocupar-me-ei em provar que o conceito fundamental das ciências sociais é o Poder, no mesmo sentido em que a Energia é o conceito fundamental da Física. »

O poder social e político é um poder que uns seres humanos exercem directa ou indirectamente sobre outros; Russell classifica-o em três géneros principais, que nua e cruamente se exibem “sem disfarces nem pretextos desnecessários” nas nossas relações com os animais ou entre estes: « Quando um porco com uma corda à volta da barriga é içado, guinchando, para dentro de um barco, está a ser sujeito ao poder físico directo sobre o seu corpo. Por outro lado, quando o proverbial burro segue a proverbial cenoura, nós induzimo-lo a agir como desejamos, persuadindo-o de que é no seu interesse que o faz. O meio termo entre estes dois casos é o dos animais amestrados, cujos hábitos foram formados através de recompensas e punições; também, de um modo diferente, o exemplo das ovelhas induzidas a embarcar num barco, quando a líder tem de ser arrastada à força pela passagem de embarque e o resto do rebanho segue depois de livre vontade. Todas estas formas de poder podem ser exemplificadas entre os seres humanos. O exemplo do porco ilustra o poder militar e policial. O burro com a cenoura tipifica o poder da propaganda. Os animais amestrados mostram o poder da “educação”. As ovelhas seguindo a sua líder são ilustração da política partidária, sempre que, como é habitual, um líder venerado está ao serviço duma clique ou de chefes partidários. » O trecho é também um notável exemplo do poder didáctico dos fabulários e do significado e importância destes na cultura humana.

A sequência imediata continua no tom de cáustica ironia que repassa não poucas passagens do livro: « Apliquemos estas analogias esópicas à ascensão de Hitler. [ O leitor reparou que Russell escreve em 1938. ] A cenoura era o programa nazi, envolvendo, por exemplo, a abolição das indemnizações; o burro era a classe média inferior. As ovelhas e o seu líder eram os social-democratas e Hidenburg. Os porcos (apenas no que respeita ao seu infortúnio) eram as vítimas nos campos de concentração, e os animais amestrados são os milhões que fazem a saudação nazi.» Não resisto a outro exemplo saboroso duma ironia que bem poderíamos qualificar de propriamente cínica ao jeito do nosso Diógenes: « O mercenário ou o chefe pirata é uma figura de maior importância na História do que aquela que lhe conferem os historiadores “científicos”. Às vezes, tal como Napoleão, ele é bem sucedido em se tornar o líder de grupos humanos que têm propósitos que são, em parte impessoais; os exércitos franceses consideravam-se a si próprios como os libertadores da Europa, e assim eram vistos na Itália, bem como por muitos na Alemanha; mas o próprio Napoleão nunca produziu mais libertação do que a que parecia vantajosa para a sua carreira. »

Contudo, não faltam no livro advertências sérias do filósofo preocupado com a “ética do poder” e a “domesticação do poder” (títulos dos dois últimos capítulos do livro), filósofo que era também o cidadão que fundou em finais de 60, com outras personalidades relevantes de vários países (entre as quais Jean-Paul Sartre), um Tribunal para os Crimes de Guerra, ainda hoje activo; e que aos 89 anos de idade as autoridades da liberal Inglaterra ainda meteram na prisão por protestar contra a política armamentista nuclear do seu país. Antes de voltarmos qualquer dia a este importante livro de Russell, aqui fica um exemplo desse tipo de advertências, uma que é hoje infelizmente mais séria e mais actual do que na década de 30.

Merece um destaque especial. –

UM AVISO

« Agora seria viável a uma oligarquia tecnicamente treinada, através do controlo de aviões, navios, centrais eléctricas, transportes, etc., estabelecer uma ditadura, não exigindo qualquer conciliação entre os súbditos. (…) Estes tecnólogos científicos poderiam matar à fome uma região recalcitrante e privá-la de luz e calor e energia eléctrica, depois de encorajar à dependência destas fontes de conforto; podia inundá-la com gás venenoso ou com bactérias. A resistência seria absolutamente inútil. E os homens treinados em maquinismos encarariam o material humano do mesmo modo como tinham aprendido a ver as suas próprias máquinas, como qualquer coisa insensível governada por leis que o manipulador pode accionar em seu proveito. Um tal regime seria caracterizado por uma desumanidade fria, incomparável a tudo o que é conhecido em tiranias anteriores. (…)

Aqueles que têm o hábito de controlar mecanismos poderosos e, através desse controlo, adquiriram poder sobre seres humanos, pode-se esperar que tenham uma perspectiva imaginativa em relação aos seus súbditos que será completamente diferente daquela que têm os homens que dependem da persuasão, mesmo desonesta. A maior parte de nós, em algum momento, já molestou caprichosamente um formigueiro e observou, com um sereno contentamento, a correria resultante. Olhando do cimo de um arranha-céus cá para baixo, para o tráfego de Nova Iorque, os seres humanos deixam de parecer humanos e adquirem uma absurdidade vaga. Se alguém estivesse armado, tal como Júpiter, com um raio, haveria a tentação de o atirar para a multidão, pelo mesmo motivo que no caso do formigueiro. (…) Imagine-se um governo científico que, com medo de assassínio, vive sempre em aviões, excepto em descidas ocasionais em plataformas de aterragem nos cumes de altas torres ou em cais no meio do mar. Será provável que um tal governo tenha alguma preocupação profunda com a felicidade dos seus súbditos? Não será, pelo contrário, praticamente certo que os veria, quando tudo corresse bem, do mesmo modo impessoal com que vê as suas máquinas, mas que, quando algo acontecesse, sugerindo que afinal eles não são máquinas, o governo sentiria a raiva fria de homens cujos axiomas são questionados por subalternos e exterminaria, de qualquer modo menos trabalhoso, qualquer resistência?

Tudo isto, pensará o leitor, é mero pesadelo desnecessário. Quem me dera poder partilhar essa opinião. Estou convencido de que o poder mecânico tende a gerar uma nova mentalidade, o que torna hoje mais importante do que em qualquer outro momento no passado controlar os governos. A democracia pode ter-se tornado mais difícil devido aos desenvolvimentos da técnica, mas também se tornou mais importante. É provável que o homem que tem um vasto poder mecânico sob o seu comando se sinta, se não for controlado, um deus – não um Deus cristão do Amor, mas um Thor ou um Vulcano pagãos. (…)

Em tempos passados, os homens vendiam-se ao demónio para conseguir poderes mágicos. Hoje em dia eles adquirem estes poderes através da ciência e sentem-se compelidos a tornar-se demónios. Não há esperança para o mundo, a menos que o poder possa ser domado e posto ao serviço, não deste ou daquele grupo de tiranos fanáticos, mas de toda a raça humana – brancos, amarelos e pretos, fascistas, comunistas e democratas -, uma vez que a ciência tornou inevitável que tudo tem de viver ou tudo tem de morrer.»


[ Estes trechos das pp. 25-27, bem como os outros citados antes , são da tradução portuguesa de 1990, feita por Isabel Belchior, de O Poder. Uma Nova Análise Social. Neste linque o leitor tem em português um interessante comentário ao livro de Russell, por George Orwell:
http://criticanarede.com/html/pol_poder.html
A imagem reproduz uma Head of Leviathan, do pintor contemporâneo japonês Kazuya Akimoto.]

terça-feira, dezembro 01, 2009

DIA DA (IN)DEPENDÊNCIA


Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.

Mensagem

No livro que, como diz, “propositadamente”, pôs à venda no dia 1 de Dezembro de 1934, o poeta Fernando Pessoa contava os “Impérios” diversamente do mensageiro poeta seu antecessor António Vieira, e entalava-se num problema: - Então Roma não era “Europa” e Império europeu ? E a medieva “Cristandade” do “sacro” Império romano-germânico; o de Carlos V ou (sem colorações “sacrais”) o napoleónico francês e o vitoriano britânico não eram europeus ? Que “Europa” seria esse Império sucessor dos outros pretéritos europeus e da “Cristandade”? …

- Respondo que só se for o da imperiosa vontade manipuladora dos bonifrates políticos que, sem escrúpulos democráticos de nenhuma espécie, nos meteram em Junho de 1985 numa “Comunidade Económica”, e usaram o claustro do mosteiro hieronimita de Santa Maria de Belém para assinar o Pacto; só se for a evoluída “União”, com a mesma espécie de uniformizados serventuários burocratas a celebrarem hoje, no mesmo sítio de Belém, a entrada em vigor do “Tratado Reformador” que assinaram a 13 e foi selado só no dia 18 de Dezembro de 2007. É a nossa sina e é um sinal.

Fizeram-no 600 anos depois de, em 1385, Nun’Álvares ter afirmado a vontade portuguesa de autonomia insubmissa ao centralismo imperialista castelhano na Península; depois de, em 1585, Mateus Álvares e o povo que o seguiu terem pago com a vida e haveres a mesma vontade de continuarmos com rei português fora do imperialismo hispano-germânico dos descendentes de Carlos V. Fazem-no no dia 1º de Dezembro, em que celebrávamos o dia da Restauração da nossa independência, como a pretenderem que esqueça e doravante outra coisa se celebre: o apagamento de toda e qualquer veleidade ou reivindicação de autonomia “nacionalista”. Nem que seja preciso fazer referendos após referendos até obter a resposta politicamente correcta (ou não fazer nenhum como entre nós, contra o que foi prometido); ou calar a justiça eventualmente devida aos alemães (civis) dos Sudetas, expulsos e espoliados e mortos no termo da 2ª Guerra.

A “Europa” que está em vias de suceder à “Cristandade” ainda está longe de ir “para onde vai toda idade”, e é de facto tão pouco europeia como tampouco era cristã a tal “Cristandade”. É e será de facto a parte euro-asiática – Ucrânia e Rússia incluídas – do tripartido Império único universal; limitará pelo norte a outra parte parceira – a China – e estender-se-á até ao estreito de Bering a tocar a terceira parte concorrente, os Estados Unidos-Canadá. Eis os três blocos com pretensões a imporem o mesmo jugo sobre os restantes povos da Terra. Se o leitor quiser ter uma noção do que será a qualidade de vida e do preço da pseudo-paz que a oligarquia gestora cobrará aos grupos sociais naturais (nações e famílias) desfeitos e aos indivíduos isolados e modificados, não tem mais que ler o 1984, de Orwell, e imaginar a síntese dele com o Brave New World, de Huxley.

Se sobreviverem aqui neste “quase cume” e “cabeça” ocidental da Eurásia alguns portugueses que não forem da bastardinha casta dos bonecreiros assinadores de “pactos” e parturejadores da Grande Prostituta no sítio de Belém, entender-me-ão se eu lhes disser que o Tejo continua a correr para o Indo; que havemos de contar à ilharga do presídio chinês com a Índia; com Moçambique e Angola motores de África; com o Brasil, sobretudo, na válida América. Tais as forças determinantes na luta pela Restauração do Portugal lusíada desaparecido e extinto na Europa em 1975-85.

O meu caro leitor, que não é da raça dos eurolandeses nascidos entre nós e que, deseducados pela escola pública destruída no pós-74, quando ouvem falar em “dia da Restauração” feriado logo salivam por mais restaurante comezaina que perpetue a borga contínua em que temos vivido, - já sabe que não valem como “profecias” nenhumas quanto ficou apontado. Estão na ordem dos factos averiguados e de públicos avisos reflectidos e repetidos. Darei conta de alguns já em próximos postais. E conte comigo apostado de alma e coração para que a lógica dos factos não seja consumada no tempo, não estando na minha mão que não se consumam no Inferno.

Para já, se o leitor não esqueceu a data por vir que ficou aqui , talvez não quererá também esquecer estas palavras do novel mensageiro Agostinho da Silva, colhidas numa entrevista publicada nos dias 31 de Maio e 1 de Junho de 1986, o ano em que na novilíngua se ouviu dizer que “entrámos na Europa”, querendo significar de facto: - que a Podridão entrou e se instalou dentro de nós.


[ O Voo de Moloch, aguarela de William Blake, feita em 1809, para o poema de Milton – Na Manhã da Natividade de Cristo. ]

UM RESTAURADOR D’A MANHÃ


É um dia; e, no céu amplo do desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.


« CM – E agora, Professor Agostinho da Silva, que irá ser o dia de amanhã para os portugueses ?

A.S – Do rectângulo da Europa passámos para algo inteiramente diferente. Agora Portugal é todo o território da língua portuguesa. Os brasileiros lhe poderão chamar Brasil e os moçambicanos lhe poderão chamar Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo a que Fernando Pessoa chamou a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora é essa a Pátria de todos nós.
Quando se diz ter Portugal de fazer alguma coisa, o que tem de ser feito sê-lo-á por todos os homens de língua portuguesa. A missão de Portugal, agora, se de missão poderemos falar, não é a mesma do pequeno Portugal, quando tinha apenas um milhão de habitantes, que se lançou ao mundo e o descobriu todo, mas a missão de todos quantos falam a língua portuguesa. Todos estes povos têm uma missão extremamente importante no Mundo.

CM- Desde séculos atrás existe a ideia de um Quinto Império. Agora, após a contracção do chamado Império Colonial, alguns esperam o início desse Império, a partir de Portugal. Qual a sua definição de Quinto Império ?

A.S- Não para mim, pois não inventei o nome, mas para o padre António Vieira e para Fernando Pessoa, o Quinto Império foi coisa perfeitamente definida e cada um o definiu da sua maneira.
Para Vieira, era o Império que viria após os quatro impérios que tinham falido. Mas tentar um Quinto Império após a falência dos quatro anteriores, só não seria uma ideia de louco – e o padre António Vieira não era louco – se evitassem a entrada, nesse Império, dos elementos culpados da ruína dos antecedentes.
Então não podemos pensar mais nenhum império em que haja qualquer doas “bactérias” políticas causadoras do desaparecimento dos antecedentes.

CM- Quais são, pois, essas “bactérias” tão perigosas, capazes de minarem até um império?

A.S – São, hoje, perfeitamente definidas, sendo a maior a mania do homem de mandar nos outros homens. Esta é a “bactéria” mais perigosa.

(…)

CM- Os portugueses poderão fundar um Quinto Império ?

A.S. – Os portugueses poderão ir para o Quinto Império se decidirem, em primeiro lugar, não ser imperadores. Este é o ponto essencial da questão. Paradoxalmente, apenas haverá um Quinto Império se não existir um quinto imperador…

CM- Portugal entrou para a Comunidade Económica Europeia, facto apoiado por uns e criticado por outros. Como vai a Europa de saúde ?

A.S.- A Europa, com tudo quanto fez, dando tanto instrumento ao mundo, e tendo Portugal transportado grande parte desses instrumentos para toda aterra, está esgotada. A Europa esgotou-se, fisicamente, porque levou toda a sua vida a realizar coisas, a pesquisar para saber, a saber para prever e a prever para poder. Mas as pessoas, a maior parte das pessoas do Mundo – isto acontece com oito em dez homens – não são dessa zona europeia ou euro-americana.
Toda essa gente tem outros ideais que não são os do Poder sobre os outros, nem os do Poder sobre si próprios. A sua ambição não é o Poder mas, fundamentalmente, o Ser. A Europa esgotou-se no Poder e temos, agora, de partir para outra fórmula, que é cada homem ser aquilo que é. Para isso teremos de mudar, muitas vezes, as próprias estruturas do Homem, e é por isso que estão avançando as ciências e as técnicas médicas. Temos de avançar para modificar, radicalmente, todas as circunstâncias em que até hoje tem vivido o Homem.

CM- Poderia o Homem ter vivido de outra forma ?

A.S. – Não existia outra maneira de viver. Era esse trajecto que havia para cumprir. Mas agora temos à nossa disposição o saber científico e as técnicas necessárias para modificar tudo isso, e modificá-lo radicalmente, dando a liberdade a todo o homem de ser aquilo que ele tem de ser: um criador sem nenhuma espécie de inibição.

(…)

CM- Como poderão os portugueses contribuir para esse tipo de mudança ?

A.S.– Os portugueses levaram a Europa ao Mundo, mas agora todos aqueles que falam a língua portuguesa têm o dever de trazer o Mundo à Europa.
E espero que tragam esse Mundo, tão diferente da Europa, que não deseja aniquilar a Europa, como muita gente supõe, mas, isso sim, humanizar essa mesma Europa, restituir-lhe aquela força interior e aquela capacidade de imaginação por ela perdida, por só imaginar num determinado sentido, por se restringir a um cero campo. »


[ A entrevista pode ser lida inteira a páginas 125-132 dos Dispersos, organizados por Paulo Alexandre Esteves Borges, em 1988, para o Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Permito-me ressalvar por minha conta, dois ou três rápidos pontos, entre outros que mereciam detença.
Primeiro, não há que pôr ênfase na “língua portuguesa” que inda reconhecidamente falam e escrevem os rendidos assinadores de pactos (embora deficientes, só eficientes na linguagem da propaganda). Contando que evolua no mundo para formas bem diferentes desta que hoje já nem conseguimos capazmente ensinar aos nascidos aqui, eu prefiro falar em cultura e espírito lusíadas.
Segundo, tudo está no “temos de avançar para modificar, radicalmente todas as circunstâncias em que até hoje tem vivido o homem”, que o leitor prevenido confrontará com o sobredito a propósito de Orwell e Huxley. E não lhe terá escapado o seguinte. Por um lado, a “Europa esgotou-se no Poder”, mas “estão avançado as ciências técnicas” e “temos à nossa disposição o saber científico e as técnicas necessárias”. Pergunta-se: estão avançando para nos libertar do Poder e libertar o homem ou para multiplicar este Poder a uma potência que nunca teve antes no mundo ? Mas, se há tanto a esperar das ciências e técnicas, tão “necessárias” e tão europeias, o que é que de verdadeiramente “tão diferente” o mundo podia trazer à Europa ? Será que para a “força interior” e a “imaginação” humanizadoras do euro-americano robotizado a tecnociência é necessária?... Aqui, por insuficiente reflexão sobre a natureza e capacidades destas ciências e técnicas, e por um excesso de optimismo relativamente à natureza e capacidades dos humanos para lidarem com elas e o “tempo livre” de cada vez mais desempregados e ociosos, parece-me que Agostinho da Silva cometeu um grande e fatal erro.
Terceiro, o leitor dos anteriores e seguintes postais que venho dedicando ao poder social e político também terá notado essa “mania de mandar um homem nos outros homens”, e a afirmação capital: - Haverá um Quinto Império se não existir quinto imperador. Como é que isso será possível, quando a tecnociência coloca uma minoria muito restrita na situação de nunca tão poucos terem tido tanto poder sobre tantos e a própria ecologia do planeta… - é o problema que nos fica. ]