segunda-feira, agosto 30, 2010

SAUDADE



Ay flores, ay flores do verde pinhoD. Dinis

É um sentido do coração .... E outras vezes vem daquelas cousas que aos homens praz que sejam, às vezes com tal lembrança que traz prazer e não pena.
D. Duarte

Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu

Camões

Ah, saudade minha, luz divina!Frei Agostinho da Cruz

É legitimo argumento da imortalidade do nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra cousa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir. Sendo esta tal a mais subida das saudades humanas: como se disséssemos um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apetecemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e temporalmente o que está de nós remoto e incerto.
D. Francico Manuel de Melo

É um finíssimo sentimento, e pena de um bem ausente com desejo de o lograr. Não disse de um bem perdido, porque também há saudades de bens ainda não possuídos, nem perdidos, nem esperados.
Rafael Bluteau

Saudades de tudo
António Nobre

Tudo é saudadeTeixeira de Pascoaes

E também a natureza angélica da Saudade então de todo e finalmente estará declarada.
Dalila Pereira da Costa


Em 1911, descia um velho do grande Marão que não dá palha nem grão a revelar uma “religião lusitana”, “anti-romana” e entronizar uma “Virgem redemptora” chamada “Saudade”. Doze anos depois, o filósofo Leonardo Coimbra, amigo de Teixeira de Pascoaes e um dos grandes patrocinadores do movimento da Renascença Poruguesa , repunha a revelação “lusitana” no quadro da maior razão portuguesa e católica:

« Mas há uma Religião que é a mais alta e nobre expressão da Saudade, porque apresenta o homem como um viajante desta vida em procura da verdadeira Pátria do Infinito.
É o Cristianismo.
O Éden era a Pátria, donde o homem foi escorraçado como consequência da revolta da sua vontade contra a união amorosa com o Deus criador.
Tombado do Éden, como fora o anjo rebelde da presença de Deus, eis que o homem caminha, em exílio, por entre a matéria rebelde. Esta cai para a Morte e, de olhos ainda deslumbrados pelo Sol da Vida, vê o desfazer-se em poeira dos mundos pelo Espaço na agonia dum coração ameaçado.
O seu coração que fora de luz sente-se dum barro que o Vento vai pulverizando; mas a Saudade do Éden é o bendito óleo que faz arder ainda aquela luz originária. »

A luz divina, de frei Agostinho da Cruz.

E em Agosto de 1955, na Revista Filosófica de Coimbra, o professor Sílvio Lima corroborava:
« O drama da saudade está numa atitude ou comportamento vivencial de inadaptação não resignada perante o presente; o eu, retrotraído e retroflectido pela lembrança contemplativa e ensimesmada de algo ausente e amado, debate-se como pássaro ferido contra a muralha do presente, porque deseja que esse presente lhe restitua como libertação e salvação (a salutate bíblica, donde proveio o vocábulo “saudade”, no pensar da sábia D. Carolina) o “paraíso perdido”. A tortura punitiva de Adão não jaz só na lembrança do éden terreal que o seu pecado dele distanciou; reside ao mesmo tempo na ansiedade queimante de regressar ao Reino de Deus....» (itálicos do autor).

Sílvio Lima respondia ao seu amigo e professor da mesma Universidade de Coimbra, Joaquim de Carvalho: assim a saudade não era sobretudo retrotensa (voltada para o passado), mas “indivisa e simultaneamente” – intensa e protensa. Em dois artigos anteriores, publicados na mesma revista – A Problemática da Saudade, de 1951, e Elementos Constitutivos da Consciência Saudosa, de 52 – Joaquim de Carvalho como que retirara as escoras do dique, e represadas torrentes duma copiosa literatura ensaística encheram os campos culturais português e galego (documentável na Antologia de 1986, por Afonso Botelho e António Braz Teixeira). A esta manobra não faltou a mão, mais enrugada mas não menos entusiasmada, de Pascoaes, na última conferência pública que proferiu, em Lisboa, Março de 1952, o mesmo ano do seu trespasse: espécie de síntese e testamento do seu pensamento Acerca da Saudade (publicada em 1973). Até parece que se tinha entrado na Era Lusíada, que o profeta do Marão anunciara em 1914, e reafirmava agora.

Contudo, após 1986, foi o deserto...

O filósofo Sílvio Lima obtemperava também ao seu confrade académico que haveria Saudade, não apenas na adultidade ou na velhice, mas já na criança, alegando então recentes descobertas da investigação psicológica ( entre outros, cita “João Piaget, o finíssimo perscrutador suíço da psique infantil” ). Podia ter citado antes o nosso Camões ( As lágrimas da infância já manavam / Com uma saudade namorada ), ou Pascoaes ( Infinita lembrança / Que enchia a minha alma de criança ). Chega depois a questionar-se sobre se a “infra-estrura biológica” de certos traços comportamentais daguns animais não teria já “notas vagas, surdas, infra-liminais”, incoações pré-humanas da humana vivência saudosa. E mais ainda, considerando, « não o Deus dos filósofos [mas sim] o Deus vivo, pessoal, não se poderá falar da saudade em Deus e de Deus ? Diz o nosso ardente Frei Tomé de Jesus: “Christo chora como o fogo que não tem lenha”. Se Adão verte saudades de o “paraíso perdido”, Deus – como Pai amantíssimo – sofre também dos seus pecados, da sua “ausência” e anela o pronto regresso do “filho pródigo”; por isso, num infinito sacrifício de amor, desce até à humanização na pessoa de Cristo. » Uma proposta também acolhida, em todos os sentidos, pelo hetrodoxo e peremptório Pascoaes: « Só existe a Saudade de Deus. »

Teríamos pois que a Saudade abrange todos os seres, tal como todo o tempo.

“Cada um considere seu coração no que já por ocasiões várias tem sentido”, aconselhava-nos o leal conselheiro, el-rei D. Duarte. Ora, que cousas a homens mais praz que sejam senão recolher a reviva flor da Alegria florida no coração, intacta, imune a qualquer velhice ? Dar-se-á então que perpétuas saudades são compatíveis com esse perpétuo retorno do mesmo, de que falava Nietzsche ? O meu caro leitor lembrará sua conta de momentos vividos tão profundamente aprazíveis que clamam pela eternidade, “profunda, profunda eternidade”. Pois então suponha que tornava a eles, tais quais foram, infinitas vezes, por um tempo infinito... – Que infinita e desaprazível monotonia se, no entretempo, não esquecesse num esquecimento total ! Mas a lembrança é consubstancial à Saudade, e por isso a correlativa esperança há-de ser não só do mesmo, mas conjunta e conjugada com uma real alteridade. Não é possível o esquecimento, e a petição saudosa é a petição de “uma vez mais” que, se não repetida temporalmente, é petição contra tempo ou para além do tempo: as perpétuas saudades são da eternidade, não duma temporal infinitude; ou então, se repetida temporalmente, “uma vez mais” seria outra vez melhor, sempre melhor, infinitamente...

A mais percuciente objecção não seria de Nietzsche, mas a do leitor encanecido e encavernado neste deserto: -“Nasci após 1985, e nada me praz que seja ou o que me praz é nada, porque estou aterrado" ...

Respondo: - Então, sem nenhuma boa lembrança que apeteça a “profunda eternidade”, resta a boa esperança: dos bens ainda não apetecidos, nem perdidos, nem esperados, com que apetecemos o que não havemos visto jamais, nem ainda vivido, e temporalmente o que está de nós remoto e incerto.

Só há uma ermada terra proibida em que a Saudade se não pode plantar: onde não há desejo nem desejado. Mas bem é desejar o que deve ser desejado, sob pena de termos um menos
« suave pungir de acerbo espinho » (Garrett), chagados duma desesperada nostalgia que muitas vezes é confundida com a Saudade. Se a ética desta não tem ficado muito transparente nas largas centenas de páginas da citada Antologia de 86, será isso porque andamos sempre mais sentidos do sentido do coração que reflectidos da razão? Ou talvez porque a luso-galaicos ela nos parecerá cousa muito natural, desnecessitada duma kantiana vontade cuja lei moral parece apartada da Natureza: - « pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Paulo Aos Romanos 8,19)...


E as frols do verde pino, ó Dom Denis ?
A edénica esperança do Futuro
Pascoaes

A Saudade é a nossa Flor, a Flor dos LusíadasPascoaes

O nome desta flor sucena ou cecem se conserva entre nós mudadas poucas letras de Susana, que em hebraico se chama. Os latinos a nomeiam Flor real, Flos regia, por ser mais que todas formosa e suavíssima em o cheiro. Entre nós significa saudades, nome que a língua espanhola não tem, nem os latinos....
Frei Isidoro da Barreira



[ Sobre a Era Lusíada o que Pascoaes repetiu foi isto, em A Velhice do Poeta, assinada de 28 de Maio de 1951: « Sim, a Era Lusíada aproxima-se.» E, na conferência Da Saudade, no ano seguinte de 52: « E teremos o advento da Era Lusíada, anunciada por mim, em Abril de 1914.» O Poeta falava, pois, do futuro.]

UMA VENERANDA RELÍQUIA

Vimos acima citada por Sílvio Lima a sábia Carolina Michaelis, que, explorando um alvitre já feito antes pelo filólogo Gonçalves Viana, ensaiou em 1914 explicar a evolução dos vocábulos soydade/soedade/suidade para saudade, por influência de saúde/sãidade/saludade. Cumpre lembrar que saúde tinha na Idade Média (como acontece no texto de que vou falar, onde também ocorre), o significado de salvação (da alma); com sentido fixado na nossa obsessiva preocupação actual com o “bem estar” do corpo, o vocábulo em uso antanho era sãidade.


Na ocasião, a erudita senhora chamava a atenção para a estranha ocorrência precoce do termo saudade num manuscrito so séc. XIV, quando o termo se divulga e impõe apenas no XVI. É de lembrar que já na primeira grande composição – O Cuydar e Sospirar - com que abre o Cancioneiro Geral (1516, mas abrangendo, na maior parte, textos e poetas da segunda metade do anterior) aparecia a mesma forma saudade.

O manuscrito referido faz parte dum códice que foi do mosteiro de Alcobaça, e é uma narrativa titulada Conto de Amaro, de autor anónimo, associável ao modelo da Navegação de S. Brandão e a outras narrativas filiáveis na espiritualidade da peregrinatio pro amore Christi, tipicamente distintivas do monaquismo irlandês, não estacionário (como o oriental) mas giróvago e missionário. Com efeito, aqui o monge não se fixa numa terra, mas lança-se aos mares, aonde Deus o quisesse levar, a longes terras, conhecidas ou desconhecidas (há quem defenda ter sido Brandão o primeiro a dar com a América); interessava-lhes muito particularmente a terra... do paraíso. No entanto, é curioso que, no texto português, Amaro e companheiros não são monges mas leigos (nos primórdios do movimento eremítico, no Egipto, encontram-se sobretudo leigos). Certo que no decorrer do périplo, não deixam de encontrar eremitas e cenobitas, masculinos e femininos, que os vão aconselhando e guiando. Mas a preponderância das donzelas e donas é uma das curiosidades notáveis, embora não inédita, do nosso Conto, sendo até que é travestido com o hábito duma monja, Brízida, e guiado por Valides, superiora do mosteiro da Flor das Donas, que Amaro inicia a escalada do monte que o levará às portas do paraíso.

Abre assim o conto, em redacção actualizada:

« Conta-se que em uma província havia um homem bom que havia nome Amaro, e diz-se que havia grã desejo de ver o paraíso terreal, e que nunca folgava senão quando ouvia falar dele. E em seu coração sempre rogava a Deus que lhe mostrasse aquele lugar, antes que ele do mundo saísse. E uma noite estando deitada, falou-lhe uma voz e disse-lhe: “Amaro, Deus ouviu a tua oração e quer cumprir o teu rogo e desejo. Vai-te à riba do mar e não digas a ninguém nenhuma cousa do teu feito, nem para onde vais. E mete-te em uma nave e vai-te onde Deus quiser guiar.»

E eis agora as duas ocorrências do termo saudade. A primeira é quando o monge Leomites se despede de Amaro : « - Meu senhor e meu amigo Amaro, grande saudade me ora deixais; beijai-me outra vez, que nunca jamais me vereis em este mundo, mas ver-nos-emos no outro, no paraíso, se Deus quiser. » A segunda, quando Valides e as suas freiras se despedem do mesmo: « - Ai, amigas, não choreis diante dele, que haverá grã coita [desgosto] e grã saudade. » Contextos típicos, como se vê. E diga-se que também há duas ocorrências da forma soydade, em contextos semelhantes, mas explicitamente associadas ambas ao desejo: « Ora tenho tristeza e soydade, ora tenho desejos de meus companheiros.... » Efectivamente, Amaro tivera de se separar dos companheiros, e foi ele só que subiu ao monte, a « um castelo mais grande e mais alto e mais fermoso de quantos no mundo havia, e estava em grande chão na cima daquela serra ». Chegado à porta do castelo encontra um porteiro, e roga-lhe entrada. Responde-lhe o porteiro que « ainda não é tempo»; mas, entendendo que Amaro era «homem de santa vida», acede a entreabrir-lhe as portas do « paraíso terreal em que Deus fez e formou Adão». E é do limiar que se abre a visão ao contemplado peregrino que o contempla... « E tudo isto viu Amaro, que não perdeu migalha, e disse ao porteiro: “Amigo, colhe-me dentro!” » Repetido rogo, repetida nega. Mas o porteiro acrescenta informações curiosas: « “E eu bem sei que tu não vieste aqui senão pelo Espírito Santo, cá tu não comeste nem bebeste, nem mudaste tuas vestes, que são mui fermosas, nem envelheceste.” E Amaro disse: “Hoje em este dia à hora de terça comi e bebi, antes de aqui chegar.” E o porteiro lhe disse: “Amigo, crê verdadeiramente que hoje neste dia são passados duzentos e sessenta e sete anos que tu estás a esta porta, e nunca te afastaste dela. Mas, amigo, vai-te daqui, que já tempo é, e crê bem que tu não entrarás cá em este paraíso terreal, mas cedo irás ao paraíso dos anjos, que é nos céus, que é melhor que este. »

Aconteceu, pois, a Amaro o mesmo que tinha acontecido àquele monge da célebre Cantiga 103 das alfonsinas Cantigas de Santa Maria, cuja epígrafe é: “ Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto do passarinho porque lle pedia que lle mostrasse qual era o ben que avian os que eran en Paraiso.”

Amaro tinha comido às 9 da manhã, citando a típica divisão do tempo medieval, cujos dias eram regrados pelo cânone dos ofícios monásticos, assinalados pelo toque dos sinos: começava à meia-noite, com o toque das Matinas; o de Laudes era às 3 da manhã; Primas, às 6; Terça, às 9; ao meio-dia, a hora de Sexta; a Nona, ou Noa, às 15; Vésperas, às 18 e Completas às 21 horas. Amaro saíra « à hora de prima», «tanto que veio a luz», a hora a que ouvia missa enquanto esteve no mesteiro de Flor das Donas. Mas não diz o texto que saiu depois dela, mas apenas que foi por essa hora que saiu com a superiora Valides a «um rio mui grande que saía daquela serra». Ora, este rio «vinha cheio de pomos e de flores.» Terá sido destas águas e destes frutos que Amaro comeu e bebeu « à hora de terça», não das espécies eucarísticas da missa maior do dia, que era a da hora terça; talvez por isso, mesmo não levado «senão pelo Espírito Santo», não chega ainda ao paraíso «que é melhor que este». Cedo lá irá, mas ainda não chegou ao termo da jornada.

Poucas horas levou o que para os de fora do paraíso demorou 267 anos. Se Amaro ignorava então viajar mais próximo à luz física das nossas modernas teorias da relatividade, não ignoraria o trânsito pela vida ( curta: 300-267=33 anos... ) iluminada pela Luz de Cristo, de que cumpria aproximar-se.

Pedira e obtivera do porteiro «uma pouca de terra» do terreal paraíso, que traz consigo de volta. Perto do mosteiro de Flor das Donas, onde Brígida e Valides tinham vivido e estavam há muito enterradas, « começou de deitar a terra que trouxera do paraíso terreal, que cheirava mais e melhor que todas as coisas do mundo « e fundou uma cidade nova, que rapidamente se povoou e prosperou. E começando de povoá-la sobreveio a Amaro «dor de morte»; chamou então « um santo homem que era sacerdote em aquele mosteiro Frol de Donas; e confessou-se a ele e tomou o corpo de Deus de sua mão e deu todo o senhorio daquela vila àquele sacerdote.» Agora, confessado e comungado, Amaro enfim « foi-se àquele paraíso dos anjos que é nos altos céus », deixando uma cidade temporal regida pelo poder de “homens santos”. Numa cidade assim podíamos nós outros passar bem trezentos e mais anos, mal-aventurados cidadãos hoje salteados e sangrados por gente doutra casta.

Temos de nos contentar com as brincadeiras da infância feliz, quando o tempo não contava; e, depois dela, com os múltiplos entretenimentos que nos procuramos, para folgar dos sofridos trabalhos e... matar o tempo!




[ O leitor tem publicamente disponível o Conto, mais a clássica Navegação de S. Brandão e outro não menos interessante Sobre a Grande Ilha do Solstício, atribuído a um certo Trezenzónio, natural das “solidões da Galiza”. Foram todos editados conjuntamente por Aires A. Nascimento (Lisboa, 1998), que não deixa de aproximar estas narrativas às tradicionais da cultura irlandesa pré-cristã ou cristianizada. ]

quinta-feira, agosto 26, 2010

DUAS CIDADES

« A partir do momento em que a cidade terrestre aspira à universalidade que, primeiramente, se atribui a cidade de Deus, é-lhe forçoso, por sua vez, promulgar um dogma único, atribuir a todos os homens um único e mesmo bem terrestre cujo amor comum fará deles um só povo, uma única cidade. Entre o Estado pagão da Antiguidade e o Estado pagão de nossos dias de hoje, há a Igreja Católica, da qual o Estado pagão de hoje reivindica e usurpa a autoridade espiritual. Enquanto que ateu, o Estado pagão moderno é totalitário de pleno direito. »

Assim falava o historiador da Filosofia e filósofo francês Étienne Gilson, traçando A Evolução da Cidade de Deus, a propósito de Agostinho de Hipona, considerando que este não só « não parece ter previsto o nascimento de povos onde o Estado, fazendo-se doutor, decretaria por sua vez uma verdade de Estado, mas duvidava de que alguma sociedade, cujo fim seja deste mundo, possa interessar-se por tal questão. » Gilson, escrevendo por meados do século XX, tinha em mente o regime totalitário soviético, cuja ideologia, como diz numa nota do último capítulo da obra, - “prepara o reino do Anti-Cristo”...

Santo Agostinho, na sua Civitas Dei, dá uma boa definição essencialista de o que era a civitas: « um conjunto de homens ligados no amor a um mesmo bem.» É um conceito universalizável e irrestringível à urbs, de ordem primordialmente metafísica e metapolítica: tem antes do mais a ver com uma opção e vocação fundamentais para a existência temporal e metatemporal de cada pessoa humana: qual seja o bem que cada um quer, assim os homens se ligam ou opõem entre si, qualificando o carácter das sociedades respectivas que uns e outros se constituem. É um conceito que, fundado nos supremos interesses de cada pessoa, sendo a natureza desta imutável ou pouco variável no tempo, ainda não perdeu a actualidade que cada um pode verificar em si e por si: se o supremo bem do indivíduo é o bem comum, a sua acção tenderá à promoção de o que é comum e, portanto, será favorável à res publica (à cousa/causa do interesse público, de todos) nas suas várias dimensões: domus (a casa familiar); urbs (o domínio territorial e social da cidade) e orbis (a totalidade do espaço humano habitado); se em contrário, promoverá o seu interesse privado, em detrimento da república.

Para Santo Agostinho o maior e melhor bem para o homem não é político, mundano e temporal – é Deus e o Reino de Deus. De aí os dois interesse fundamentais que determinam e apartam entre si duas classes e duas sociedades de homens: os que amam sobretudo a Deus, até ao desamor de si e do mundo; os que se amam sobretudo a si e a este mundo, na indiferença ou desamor a Deus. Neste ponto, o pensamento do bispo hiponense é como a ideativa estruturação e ratificação final da mais ampla tomada de consciência de uma novidade histórica: o aparecimento na Terra de uma sociedade nova – a Igreja - , emancipada do povo judeu e do populus romanum. Uma Igreja católica, isto é, com uma vocação de universalidade irredutível ao território público, social e cultural, da romanitas imperial, do ocidente (Roma) ou do oriente (Constantinopla).

À época da redacção da Civitas Dei (420-426), cerca de cem anos após o édito de tolerância para os cristãos e da conversão do imperador Constantino, ainda ficava só implícita neste magnum opus de Agostinho a maranha de problemas que, séculos em fora, até hoje (e amanhã...), virão à tona da história das atribuladas relações entre o Estado e a Igreja. Mas o enquadramento de princípios e fins –metafísicos e teológicos, como têm de ser – que o grande filósofo cristão dramaticamente vai desenvolvendo aos olhos do leitor contém, a meu ver, a solução insuperável e perene do problema fundamental. Por uma razão simples: é a mais conforme à letra e ao espírito evangélicos.

A cidade de Deus, o Reino de Deus e dos anjos e santos bem avanturados e vivos no Céu, integra mas não se confunde e transcende a Igreja peregrina (em todos os sentidos desta palavra) e em trespasse neste mundo. Por seu lado, a civitas terrena integra, mas transcende e não se confunde com o Estado, que é um ordenamento das sociedades humanas necessitado pela necessitada condição a que vimos, subsistimos e passamos neste mundo: há polícias, por isso há ladrões (e o inverso; e de tal modo acoplados em simbiose que as suas máscaras e identidades nos podem iludir). Os arcontados da civitas terrena são o diabo e os seus anjos (por isso também se chama civitas diaboli) e, neste mundo, todos os desprezadores de Deus seus sequazes, que os seguirão ao inferno. Mais ou menos misturados durante o tempo da duração deste mundo, os cidadãos das duas cidades serão definitivamente apartados em face de Cristo no fim do tempo e julgamento final deste mundo. Entretanto, a mistura é feita de dramática e agónica tensão e, também aqui, não faltam delusivas aparências: nem todos os que aparecem na Igreja são verdadeiros cidadãos da cidade de Deus; nem alguns dos que aparecem fora da Igreja deixam de ser cidadãos dela. Por isso mesmo, e também porque são essencialmente e metafisicamente diferentes, uma importantíssima e decisiva consequência implica-se existencialmente, no âmbito da ordenação política das sociedades humanas: a felicidade, a justiça, a liberdade e a paz da Igreja não são da mesma natureza nem podem triunfar nunca completamente nos Estados da civitas terrena. Dito de outra maneira, e retomando a definição inicial: o bem comum de que comungam os associados cidadãos da cidade de Deus pode reflectir-se, mas nunca reduzir-se ou identificar-se, no bem comum que respeita à res publica do Estado. E inversamente. Não esqueçamos que um Estado é sempre, naturalmente, um estado de necessidade e, por isso, as suas liberdades civis ou políticas nunca podem dar o que dá a liberdade espiritual dos filhos de Deus. Esquecer isto é forçar a u-topia ao lugar deste mundo, em que não cabe, forçada à força de violências e pretensões totalitárias. Esquecer isto é esquecer o regime normal da coexistência possível, que é a norma de Cristo (cf. Mt 22, 20-21), e que Agostinho tão bem evidenciou: - a Separação do que é por natureza apartado: o poder de Deus e o poder dos homens.

Estamos já na abertura citada de Gilson. A expressão decisiva é “bem terrestre”, e não preciso de dizer ao meu ocidental leitor qual é o “dogma único” que nesta parte rica e enfartada do mundo compendia toda a soma desses bens terrestres que a maciça propaganda do Estado pagão dos nossos dias decreta para as massas consumidoras: a “felicidade”. Propaganda tanto mais convincente quanto esse estado de necessidade em que sobrevivemos nos predispõe a aceitar como “evidentes” bens que, de facto, são necessários; mas enganosa quando vende os como fins, bons em si mesmos ou os mais humanamente dignos, quando são e serão sempre apenas meios, mais ou menos precários, transitórios, insuficientes, moralmente menos dignos e, portanto, iludindo e degradando a dignidade do humano.

O preço que pode custar o logro deste “bem estar” (entendido à maneira do hedonismo utilitarista) à “Humanidade” (entendida à meira do positivismo comteano das massas organizadas por uma burocracia de clercs savants) é a comum submissão totalitária da civitas terrena a poderes de desumanização.


[ Citei a tradução brasileira de Les Métamorphoses de la Cité de Dieu, feita pelo filósofo João Camillo de Oliveira Torres em 1965.
Abatido por então o nazi-fascismo, Gilson preocupava-se justamente com o comunismo soviético. Mas o filósofo francês não deixou de dar notícia que, já do lado do “mundo livre”, se propunha (citando James Burnham) a dialéctica alternativa de um “império mundial americano” ou de uma “federação mundial criada e dirigida pelos Estados Unidos” como uma “associação protectora dos povos”... E o francês não deixava de advertir: « Como a verdade em que Comte se fundamentava era a da ciência positiva, é difícil imaginar que a razão natural possa propor doravante um laço de união cuja universalidade seja mais estritamente natural.»
Já antes, em 1900, na sua última obra publicada em vida, o grande filósofo russo Vladimir Soloviev deitava preventoras e preocupadas vistas para os finais do século XX, e via outra face do Anti-Cristo proteiforme... –

http://www.sombreval.com/Court-recit-sur-l-Antechrist-Vladimir-Soloviev_a138.html

Sobre Burham, o teorista da emergente sociedade dos gestores, um artigo de George Orwell:
http://www.george-orwell.org/James_Burnham_and_the_Managerial_Revolution/0.html ]

terça-feira, agosto 24, 2010

EDUARDO DE OLIVEIRA



« De Melgaço, um automóvel pega-nos ao colo e pousa-nos na serra, onde nos diz adeus, sem mais, das suas rodas que fogem. Palmilhamos por entre as obras de construção da estrada a meia hora que nos separa de Castro Laboreiro, onde há tempo desejava vir. Castro Laboreiro interessou-me desde sempre, nem sei porquê. Pelo castro e as ruínas do arcaico castelo? Pelo sítio perdido nos confins? Pelos seus cães famosos? Nem sei. Imaginei-o centro de lendas e saiu-me ele próprio inacessível, remoto e vetusto, lenda de pedra e alturas. Antigo e perdido na erma paisagem sobre o vale a pique, onde o castelo é proa natural e milenar.

Procuramos o jovem abade amigo do António Jorge. Alto, magro, o rosto de criança onde paira a inocência duma certa tristeza resignada. Meio possesso de entusiasmo, queima nesse ardor mesmo o resto que a ordenação lhe levou. Vem connosco, monte acima, de pistola no bolso, a bengala na mão e o perdigueiro ao lado. Vive daqueles montes, que conhece como a palma das mãos, e da alma dos seus paroquianos, que talvez não conheça com tanto amor. Deve reconhecer melhor o penedo que o pecado, e saber tocar-lhe com mais jeito. Mostra-nos o caminho da aldeia onde vamos pernoitar. Despedimo-nos no alto do vale, entre o ladrar do podengo aos coelhos e as sombras que caem rápidas. Segue, solitário, no seu vulto de vigília que se destaca, triste, no cimo dum rochedo, com aquele cão, único companheiro da eternidade, ao lado. »

O nomeado António Jorge era Jorge Dias, o grande etnólogo continuador de José Leite de Vasconcelos. Os outros companheiros, não nomeados aqui, poderiam bem ser, como em tantas outras saídas por esses povos em fora (que eram outras tantas entradas no nosso mais interior português) a esposa de Jorge, Margot Dias; o minucioso e precioso desenhador e pintor Fernando Galhano; ou o Ernesto Veiga de Oliveira, não menos eminente etnólogo, que trabalhou com Jorge Dias, de quem era amigo de infância. Quanto ao escritor do texto, permanece hoje quase tão anónimo quanto o padre descrito, mas na descrição que faz logo se assina por quem é: um grande poeta da nossa prosa portuguesa do século XX. –

Pouco sei da pessoa e vida de Eduardo de Oliveira, nascido no mesmo ano de Jorge Dias (1907), e irmão do citado Ernesto Veiga de Oliveira. Nasceu no Porto, onde foi médico (como seu pai), e em 1977-79 ainda seria vivo, mas ignoro o ano em que nos deixou. Era melómano e executante amador de piano. Era poliglota viajado e versado nas literaturas alemã, francesa (em que chegou a versejar), inglesa, espanhola, sem falar da nossa: era, portanto, um representante típico daquele Porto Culto justamente descrito e louvado pelo cultíssimo Sampaio Bruno; e não menos categorizado representante daquele friso de admiráveis médicos-escritores (ou escritores-médicos) que tão bem nos têm tratado, como este aqui.

De Eduardo de Oliveira conheço duas obras de vulto: um diário em três volumes, que intitulou Monólogo, abrangendo os anos de 1942 a 48; e a narrativa Caminho de Santiago. São edições de autor, talvez quase só de exemplares para amigos, que tive a sorte de encontrar em alfarrabistas (um deles oferecido pelo inesquecível amigo Luís Reis, a quem saudosamente saúdo daqui). Por certas indicações que dá nos livros, terá escrito outros, mas só os citados vi na Biblioteca Nacional, e lá os verá o leitor feliz e privilegiado. O último escrito que tenho dele foi a colaboração que deu No Centenário de Teixeira de Pascoaes, um in memoriam publicado em 1979 pela Imprensa Nacional : é maravilhoso averbamento de tributo ao amigo cuja casa Oliveira fraquentava desde os dezasseis anos (não menos maravilhosos os encontros com Pascoaes que nos conta no seu diário, a começar por aquele de 15 de Fevereiro de 1943).

Nos três volumes do Monólogo o leitor curioso e exigente encontra-se bem servido de tudo, a cada página: a prática do médico com os seus doentes, dentro e fora do consultório; descritivos etnográficos da paisagem social e natural (principalmente do Norte); apreciações literárias e crítica musical; notícias da 2ª Guerra; impressões de passeios e encontros de acaso com a mais variada fauna humana, de todas as classes e condições... E tanto nos podemos encontrar numa branda isolada nas cumieiras da Peneda, ou nos extremos altiplanos de Rio de Onor (aonde Oliveira acompanhou também os trabalhos de Jorge Dias), como no teatro de S. Carlos ou na Opéra de Paris; tanto nos bairros pobres do Porto com o médico atencioso e compadecido, como a passear nos areais de Fão ou a ler Samuel Pepys ou Scarron. Mas, na miscelânea, isto sempre: o trato sensível e humaníssimo do clínico geral em humanidade atenta e solidária; a funda meditação existencial do homem e o fino tratamento da linguagem do grande curador e artista dela, que foi Eduardo de Oliveira. É pena que este poeta e discreto amigo de poetas como Sophia, Torga, Eugénio de Andrade ou o já citado Pascoaes, tenha ficado num muito mais discreto reconhecimento público.

O trecho acima é datado de Lamas de Mouro. Eis o registo do dia seguinte :

« Branda de Ceira - Serra da Peneda, 24 de Agosto (1945).
Enquanto o cavalo carrega as mochilas, vamos num salto ao banho, no rio do mouro. Saímos refrescados, sem sombra de mouro ou mesmo de cristão; só as serras em redor e, firme entre os loureiros, a nossa nudez pagã. Trepamos lentamente a ladeira, a calçada dos peregrinos que sobe até à Portela do Lagarto, para aí descer, por uma vereda pedregosa, meio arborisada, até ao santuário da Senhora da Peneda, na sua igreja maciça, lanços de escadório e capelas barrocas, dos Passos, rodeado das casas dos romeiros, a confraria, o hotel e mais apensos. Isto a dez ou quinze quilómetros, pouco mais ou menos, do ponto mais próximo com estrada. (...)

Nós é que resolvemos não ficar à sombra da santa e trocamo-la pelo alto divino da serra, no seu cume, a pouca distância do marco geodésico, numa cabana de pastores. Leva-nos agora as mochilas o macho do Dourado, almocreve e contrabandista às suas horas, de vinte e nove anos, alto e magro, a quem não larga dum passo o Famalicão, o cachorro de dois palmos por um de alto e “fox”, que corre aquelas léguas sem fim ao lado do dono, com uma côdea e uma batata, e geme de vez em quando trilhado entre as patas do macho.

Subimos, subimos, e subimos. Para cima de quatro horas sem descanso e sob um sol de rachar. Procuramos a branda de Ceira, onde ficamos. O nome diz tudo. Uma brandura e macieza de relvas, com um fio de água à beira. E a cabana de pedra tosca dos pastores, onde dormem na cama de fetos que se levanta com eles ao amanhecer, quando passam a noite na serra. Como eles, por conselho de alguns com quem conversámos pelo caminho, apanhámos e trouxemos a lenha que aqui não encontraríamos. Os fetos colhem-se depois, já noite, em volta da branda, às braçadas, como flores. Ao longe, uns restos ainda lilazes do Gerês. A lua cheia, quente, sobe agora, devagar. Cozem-se as batatas com a lenha da providência. Come-se, e depois da ceia simples e da paz, protege-se tudo dentro da cabana, por causa dos bichos que porventura aqui apareçam. Andam por ali umas vacas, solitárias, sem ninguém a olhar por elas. Passam assim a noite, imagem animal do abandono e da distância.

Sentamo-nos em frente da cabana, naquele silêncio absoluto, experimentando-o fisicamente. Em volta, a serra incomensurável e aquela macieza da branda aos pés. Ao alto, o céu estrelado. Em nós, a baixar lentamente, assenta o benefício da canseirosa caminhada, à medida que o silêncio nos vai imobilizando, até parar o curso das nossas conversas e vidas, tornado pura pausa. »

Escolhi estre trecho menos por especialmente característico que pela saudade de experiência semelhante que vivi noutro sítio, “um dos locais mais mágicos que há em Portugal”, como na televisão se atreveu a divulgar o prof. Hermano Saraiva. Por uma vez, não exagerou... Mas os seus muitos tele-adimiradores invadiram entretanto o sítio, que hoje não fica mais profanado se eu disser ao meu leitor curioso e veraneante das boas coisas que inda por cá temos : é Antas de Mazes, nos altos arredores serranos de Tarouca. As antas terão existido, sim, mas delas só resta o nome; e a suspeita de que os pastores as terão usado para construir as colmadas brandas, ou a ponte singela sobre as águas duma ribeira que lá passa ao pé. Lave nela os pés o leitor andarilho e "devorado de horizontes": verá que lhe ganham asas.


[ Faz no corrente 2010 cem anos que nasceu o irmão de Eduardo, Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990). O leitor tem aqui uma ligação boa para ficar com uma ideia da formidável obra do grande etnólogo português: http://alfarrabio.di.uminho.pt/arqevo/textospa/html/evo/evobiobi.htm


E nesta pode ouvir-se a voz dele:



CAMINHO DE SANTIAGO


Segue a prova que dou ao leitor mais exigente, daquilo que afirmei acima : Eduardo de Oliveira é um dos nossos grandes escritores, injustamente esquecido.

Para bom apreciador, meia página basta. Eis os quatro primeiros parágrafos da saída (“À Guisa de Preâmbulo”) para essa maravilhosa viagem em “Dez Jornadas” pelo Caminho de Santiago, s.e, s.l., impresso nas oficinas gráficas de O Primeiro de Janeiro, em Abril de 1970.

São 825 quilómetros, desde Saint-Jean-de-Pied-de-Port, ainda em França, até Compostela, de paisagem exterior e peregrinação interior, feitos por um ciclista (o Autor) e um seu companheiro, de vespa, guiados pelo Liber Sancti Jacobi, o famoso guia dos peregrinos medievais. E são 286 páginas extensas de descritivo histórico e paisagístico, não menos intensas duma tocante, posto que discreta, repercussão interior que (vamos pressentindo à medida que vamos andando) não se pode conter nesse Caminho, e o transcende...

_________________________


À GUISA DE PREÂMBULO

« Distintos e separados, ganhando decisão e recobro um do outro, esclarecendo-se mutuamente no sumum de solidão que ambos indicam. Tentados não em um, unidade impossível, mas lado a lado discorrendo. Conseguindo essa harmonia, liberdade e coesão, jogo subtil de sentimentos e pensar. Rolando, rolando, num mínimo de desgaste, os dois futuros peregrinos só adiante se reunirão. Com encontro definido, seguirão caminho, de momento, cada qual pelo seu lado.

De scooter, um, estatura de homem, luz e certeza, mais sobre o silencioso, sonho e medida acertados – o que busca já leva encontrado –, olhar em que a beleza e arte se imaginam, coração onde a bondade se revê. Cruz de vida e estrela, as mãos abrem-lhe obras que ideia e desejo concebem, o talento cria e assina. O outro, andado mais em anos que em razões, devorado de horizontes, arte e destino de monólogo, amante infeliz o apelidam. Amante ? De quem ? Da própria vida, iremos crendo, que lhe retribuirá mais amargura e penas. Ciclista assinado, por seus trabalhos, leva necessariamente consigo a bicicleta. De combóio, despachada a par do bilhete. Cinco escudos: Porto,S.Bento – Hendaia.

Motivos da partida ? Oscilação, maior incerteza no quotidiano ? Escalada, clareira desvendando história e amarras ? Peregrinos mais entregues de alma e corpo, tentados das atribulações e vicissitudes do caminho ? Antiquíssima curiosidade nómada, sempre nova a descoberta, a paisagem : terras, povoados, gentes. Plantas, arrefecido ou ardente minério. Crença e leito de qualquer rota e meta.

Desporto ? Se entendermos por desporto, deposto o relativo da frágil competição no semelhante, fora de nós sempre a meta que somos ainda, impenitentes, e, ao cabo, seremos sempre. Asfíxica, agónica é em nós a crucificação, e o calvário pode ser de momento essa encosta a vencer, a curva adiante a dobrar. Quebrar de paixões e lágrimas, ou criatura a evitar a colisão... »




sexta-feira, agosto 13, 2010

O MAL RADICAL

Um mundo em que, na perspectiva naturalista, o sadismo e o masoquismo (e a pedofilia e a necrofilia e a bestialidade...) fossem necessários para alguma concebível vantagem adaptativa da espécie, ou ao menos como subprodutos anómalos e indesejáveis de normais capacidades de agressão e sofrimento, - tal mundo seria, a meu ver, incompatível com o “muito boa” com que Deus avaliou a Criação, segundo o relato bíblico. Mas já sabemos que prazer e sofrimento não podem ser todo o bem e todo o mal que afectam a existência humana; e nunca deve esquecer-se que a lei moral kantiana – a norma do bem – é para ser querida independentemente de qualquer prazer ou sofrimento que traga o dever de a cumprir. Também ficou rejeitada aqui, na última semana, a hipótese de um Deus cruel sadeano, que ilimitadamente se comprazesse com o sofrimento humano: tal entidade, a existir, não pode ser propriamente divina. E também já vimos que, de acordo com Kant, é no mau uso da liberdade, motivada contra a lei moral, que deveria encontrar-se o princípio radical do mal na acção humana. Nesta parte, estou menos de acordo com Kant. De facto, se a máxima de uma tal acção malevolente fosse – “Age de maneira a usares unicamente e sempre as pessoas dos outros unicamente como meios e nunca como fins”-, tais “meios”, ou careceriam de sentido racional (não há “meios” sem “fins”), ou seriam meios sempre do interesse final de um agente particular. (Um caso típico, por exemplo, seria o sujeito que usasse o seu corpo apenas como meio para um fim inteiramente alheio à conservação natural desse corpo, com intenção suicida.) Por isso Kant considerava – se nos referirmos apenas à acção humana – que o mal radical estaria originariamente num desordenado “amor de si”, e que o mais que fosse além disto era propriamente malignidade diabólica, não humana. E isto é compreensível e aceitável nos termos e limites, sempre bem definidos e moderados, do pensamento do grande filósofo alemão. Infelizmente, é o próprio suicídio um dos casos que fazem pensar que, em sua concreção existencial, no humano, tais limites kantianos são muito elusivos e difusos; e que o “amor de si” não é o mal mais radical que pode afectar o uso da liberdade humana. –

O suicida sofre de tal maneira que quer pôr um termo ao seu sofrimento. (Suponho mesmo que o quis de lúcida e livre vontade manifestada previamente.) Mas não quer isto apenas. Se o faz, ele espera não vir a sofrer ainda mais noutra qualquer possível existência, reencarnada ou desencarnada. Quer e espera um termo final, pelo menos um fim que exclua qualquer igual ou maior sofrimento possível. De tal modo que não repugna admitir que a maior parte ou todos os suicidas nestas circunstâncias (intencionadas e ocasionadas por um insuportável sofrimento) acreditam num termo final que, ou conduz a um menor sofrimento, ou é absoluto e, portanto, que (o) nada se segue desse acto. Mas esta crença niilista pode não afectar apenas as consequências do acto suicida, que seria então caso único de um acto da vontade com resultados mas sem quaisquer consequências (no tempo, ou fora do tempo na eternidade) : o suicida pode considerar o passado da sua existência totalmente desastroso, sem nenhum sentido nem valor. E assim o nada abrangeria todas as partes temporais da existância: passado, presente e futuro. ( O mesmo com o homicida, relativamente aos outros: ele espera e deve querer que nada das pessoa que matou sobreviva capaz de lhe tornar a existência intolerável, neste mundo ou em qualquer outro.) Dir-se-ia provavelmente que o suicídio é um indicador existencial claro de o que faz um “amor de si” ou interesse egoísta totalmente desordenado da lei moral kantiana. Eu diria que o só interesse egoísta não pode ir até ao ponto da extinção de si ( se o sofrimento fosse minorado ou desaparecesse, seria de esperar desaparecesse a intenção) e que, sob este ponto de vista, haveria uma diferença decisiva relativamente ao homicida; que o suicida, enquanto quer apenas escapar ao sofrimento, age de acordo com uma natureza que o predispõe a procurar o prazer e a evitar a dor e, portanto, enquanto tal, o seu acto não seria ostensivamente contrário à lei moral, mas apenas indiferente; e mais diria que é, pois, na vontade de aniquilação de si ou de outrem, e (idealmente) de qualquer lei natural ou moral impeditivas – que transparece o mal.

Há infelizmente um outro caso existencial em que parece ainda mais transparente. O suicida ainda afirma uma vontade e ainda tem uma esperança, mesmo se inteiramente negativas; e estas, como que restritas apenas à pessoa individual, são ainda uma afirmação da sua condição de pessoa – a pessoalidade – e de um temperamento pessoal (ou personalidade). Mas, se se dá termos o suicida e homicida juntos numa mesma pessoa ? Parece óbvio que há aqui uma maior vontade de aniquilação. (Exclui-se os que ainda acreditam ir para algum “paraíso” como “mártires” de guerras “santas”...)

E ainda outro caso: - se a vontade de aniquilação já parece que anulou a vontade própria e se tornou como impessoal, mas o sofrimento não se sobrepõe à razão advertida da possibilidade de não anulação total da existência, que fará o desgostoso e aborrecido da vida? Não pode querer nada e não pode deixar de querer nada. Tal é o tédio, que não conclui necessariamente no sucídio ostensivo.

Compreende-se que a vontade sujeita ao nada pode pensar que não há nenhuma vontade própria e livre. E é possível que na sua fundamental indiferença alegue uma “fatalidade” e o “fatalismo” das circunstâncias que a levam a matar outros e a deixar-se matar a si a “sangue frio” (a impessoalidade parece ter anulado a consciência moral e, como disse, o sentimento não se sobrepôs à capacidade de planeamento e análise, que pode ficar aumentada).

Para a vontade assim aniquilada e aniquiladora, a lei moral é alheia e indiferente. Sobre ela pode triunfar o “mecanismo da Natureza inteira” (na expressão de Kant), incluídos todos os atavismos da hereditariedade e da sociedade, que podem mascarar mais ou menos o sentimento de estranheza a tudo e de desgosto de tudo, consoante a maior ou menor consciência dos indivíduos afectados (alguns dos quais se pretendem e, de facto, aparentam extraordinária “lucidez”). Contudo, como a vontade e a liberdade (se realmente existe) não podem ser de todo anuladas, a fórmula mais precisa e realista deste tédio será: - não quer nada e não pode deixar de querer (uma fórmula que nos soa mais familiar...). Mas, de querer o quê? Nada. E o que dá este nada confrontado com uma lei moral a que é profundamente estranho, mas que não pode anular? Nada.

É nesta vontade (quase) anulada e praticamente anuladora, sem interesse nenhum por lei moral alguma, que me parece estar o “mal radical”.

Teremos de prospectar mais fundo o terreno nutriente de tal tal raíz.



[ É fácil de ver que, no caso, os atavismos sociais, enquanto complexo de normas controladoras da manutenção da existência do grupo, quanto mais fortes forem, mais conseguirão bloquear ou corrigir as “circunstâncias” eventualmente favoráveis à irrupção (habitualmente “súbita”) duma vontade aniquiladora que, também habitualmente, tendemos a associar a indivíduos “psicopatas”. Só assim o “mecanismo da Natureza” triunfaria efectivamente (no sentido da auto-conservação dos indivíduos e do grupo). Mas, se as normas sociais são débeis e se rompem... O leitor português da sociedade portuguesa de hoje vai sabendo o que acontece. ]

terça-feira, agosto 10, 2010

O ÓDIO ACUMULADO (1914-1915)


« Nas perseguições, nas paixões, quantos ódios acumulados! Todos os dias o tropel cresce como uma onda a avolumar-se no horizonte. Hoje (9 de Janeiro 1914) João de Freitas interpela Afonso Costa no parlamento. Afirma-se que o não deixam falar. A meu lado um oficial de marinha diz:
- Se a formiga branca intervém, dou um tiro num!... Sessões tremendas, em que aquele homem lívido cresce e avança, dizendo as últimas a Afonso Costa. Sente-se o bafo da tragédia muito perto. Toda a gente percebe que o caso é de vida ou de morte. Em dado momento o Alexandre Braga ousou interrompê-lo – e a resposta veio logo, como uma bofetada: - Cale-se! O senhor não tem autoridade moral, o senhor que vai procurar as amantes à sua própria família! – O outro calou-se, amarfanhado. A Câmara, redemoinhou, petrificou, assombrada, e ele continuou com o discurso, sem olhar para os lados. Tinham dito ao [Brito]Camacho: - Não vá sentar-se ao lado do João de Freitas, porque hoje matam-no, hoje há tiros! – Mas o Camacho, como de costume, foi sentar-se na mesma bancada. A certa altura, um amigo do Afonso Costa, efectivamente, avançou para o João de Freitas que, continuando a interpelação, o susteve com um gesto para que se detivesse, metendo ao mesmo tempo a mão direita na algibeira...
Mas o Afonso Costa domina-os e pensa talvez em arredar o Camacho, a quem odeia, e o António José, a quem desdenha. Aparece nas Câmaras com um riso de superioridade e um cravo vermelho na lapela, acompanhado pela púrria [sic].
O pior é que o ódio aumenta. Um deputado diz-me hoje: - Se o visse morto deitava gravata vermelha! – Citam-se escândalos, apuram-se números. Os jornais da noite são arrancados das mãos dos vendedores. O ministério cai ? O dia 29 de Janeiro é talvez decisivo para a República. Dominada a greve, votado o adiantamento, entra-se numa nova fase política ? O António José [de Almeida] reconquistou a popularidade. As galerias intervieram com uma pateada a Afonso Costa, quando Júlio Martins falou no assalto à casa sindical dos ferroviários. Mas o António José, que já não consentira que João de Freitas chamasse ladrão ao Afonso Costa, na República, sacrificando assim uma velha amizade, declarou aos seus correligionários que não quer governar com as galerias, A 26, à noite, prepara-se uma grande manifestação ao governo, que é dissolvida à pancada, no Rossio. – Nunca vi bater tanto em Lisboa. Estoiram bombas na rua do Carmo. As senhoras vêm para as janelas, como nas procissões. Grandes rolos de fumo crescem lá de baixo. A cavalaria estaca. Gente foge, gente corre aos gritos de – Morra!Morra! - Uma dama passa indifrente, pelo braço do marido, com um cão felpudo ao lado. Gritos, vivas, aclamações.
(...)
Isto aguenta-se ou vem a monarquia? – Se vier, diz o António José, ainda hei-de arranjar quem me empreste, sabe Deus com que custo, dinheiro para me meter num paquete e ir para a Argentina. Mas lá, que hei-de fazer aos quarenta e sete anos? – A monarquia é o menos. Caminhamos para a anarquia e para o crime.
Um dia destes (Maio 1915) João de Freitas disparou o revólver sobre o João Chagas, quando vinham no mesmo combóio para Lisboa, vazando-lhe um olho. A bala ia direita para o Afonso Costa – ia direita aos políticos sem escrúpulos. E ele era, foi-o sempre – um grande homem de bem, com o culto da honra. Poucas palavras, a não ser que se tratasse do Afonso Costa, porque então extravasava. Um dia, na Foz, no Mary Castro, falou, falou interminavelmente, no caso das bínubas, no caso do testamento, em todos aqueles casos, sua única preocupação, que tratou nas Câmaras e publicou em folhetos. Ouvia-o sem uma palvra. Tinha-o diante de mim, lívido, seco, de barba rala na cara em pentágono, com os olhos fuzilando. Ouvia com espanto correr aquele jacto em fusão. Mas só o compreendi bem quando me tocou com a mão: a sua tensão nervosa era tão grande que tinha as mãos geladas – as mãos dum morto. Trazia consigo um filho pequeno, que adorava, mas acima de tudo estava a honra, a que sempre sacrificou a família e o interesse. Já em rapaz os outros diziam dele, com respeito: - É o João de Freitas! – É um tipo que colocou num altar não sei que ídolo, não sei que regras ou que princípios, que os outros, até Junqueiro, classificam de loucura. E efectivamente a honra, até àquele ponto, não pertence a este mundo: o que pertence a este mundo é a honra palavra, a honra acomodatícia, de tirar e pôr, uma cousa convencional e sem exageros, uma cousa humana, que se dê bem com toda a gente. A outra, a dele, incomoda e chega a irritar os homens honrados...
No comboio prenderam-no, agarraram-no e entregaram-no aos sicários, que o mataram lentamente no Entroncamento. Cuspiram-no, escarneceram-no, torturaram-no até ao último suspiro. Por fim enterraram-no como um cão, por ordem do administador de Torres Novas. »

[ Raul Brandão, Memórias, tomo III. Vale de Josafat (1933), ed. 2000 por José Carlos Seabra Pereira.
O dr. João de Freitas, advogado e professor do liceu de Braga, nascido em 1873, participara com a “falange académica republicana” na revolta de 31 de Janeiro de 1891, a primeira tentativa armada contra o regime monárquico; foi governador civil de Bragança, após o 5 de Outubro, deputado à Constituinte e senador, alinhando no Partido Evolucionista de António José de Almeida. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira dá outra versão da sua morte: “ Subjugado pelo dr. Paulo José Falcão e outras pessoas, foi entregue a soldados da GNR mas, ainda armado, desprendeu-se dos seus captores e tentou de novo disparar o revólver, sendo então morto com um tiro de carabina.” ]

sexta-feira, agosto 06, 2010

UM DEUS CRUEL ?

« Onde estava Deus, onde estava o projectista inteligente do universo quando os nazis zelosos transformaram em fumo 1,5 milhões de crianças? Onde estava o ser todo poderoso, omnisciente e perfeitamente bom cuja essência mesma se opõe radicalmente ao mal, enquanto milhões de crianças morriam à fome às mãos de Estaline .... A existência do mal é a ameaça mais fundamental ao conceito ocidental tradicional de um Deus sumamente bom e todo-poderoso. »

É assim que Andrea Weisberg abre o capítulo que dedica a “O Argumento do Mal”, contribuição sua para a colectânea coordenada e apresentada por Michael Martin, sob título Um Mundo Sem Deus. Ensaios Sobre o Ateísmo, traduzida pelo filósofo português Desidério Murcho, e publicada há poucos meses em Lisboa. Lá encontrará o leitor interessado uma versão mais vulgar do argumento a que me referi no postal anteirior.

Às vezes pergunto-me se o “argumento do mal” é moralmente bom: - evoca-se o imenso sofrimento de humanos e animais para nos convocar ao dever urgente de combater o mal? Não; está-se a usar o sofrimento para combater... um “conceito” ou uma crença. Será que são estes conceito e crença de algum modo os responsáveis por tal sofrimento? E se, por outro lado, o “argumento do mal”, em qualquer uma das suas versões, não é demonstrativo mas apenas “indiciário” ou retoricamente sugestivo (que é o que, de facto, se apura), a tentativa de minar essa crença é uma contribuição válida para robustecer o combate ao mal ? Anulado esse “conceito tradicional”, tal combate seria mais eficaz?...

Também às vezes parece-me que os argumentadores, no cenário do Teatro humano deste mundo se fixam as vistas apenas no ponto em que há vítimas inocentes da violência que sofrem, e depois imaginam-se Deus como uma espécie de super-homem Clarke Kent assistindo distanciado na plateia, sem intervir... Talvez fosse melhor partirem para o “argumento” mais informados do “conceito ocidental tradicional”, que inclui um Deus humanado, traído, ofendido e crucificado.

Psicologicamente, a ênfase no sofrimento como um mal pode encobrir inexaminado preconceito e desapercebida ansiedade. - Procede-se por abstrair e absolutizar certa fracção temporal duma existência temporal limitada, e ignoram-se ostensivamente possíveis existências sucessivamente limitadas, existências temporalmente ilimitadas, ou existências eternas. (Típicamente, os argumentadores ignoram o sofrimento infernal ou a beatitude celeste.) Parece-me, pois, um argumento significativo da insofrida intolerância do hedonista, que julga a “vida” coisa de dois dias e que se dá ansiosa pressa de a gozar o mais possível. Para este, o sofrimento imerecido terminado na morte será sempre um escândalo: coisa sem sentido e sem esperança.

Responderei primeiro ao desafio que o sr. marquês de Sade aqui nos deixou na passada semana, e que também não deixa de ser endereçado ao teísta.

(1) Um Deus cruel poderia talvez ser um criador, mas não um Deus soberano, independente e livre relativamente às suas criaturas. Dependeria delas como o senhor sádico depende dos seus escravos. Ora, se não é inteiramente livre relativamente à sua criação, não é propriamente digno de ser considerado Deus.

(2) Se há criação quando há uma dependência ontológica unilateral e exclusiva das criaturas relativamente ao seu Criador, mas nunca o inverso, então um Deus cruel que depende da existência das criaturas, não só não pode ser Deus (1) como não poderia ser criador. Mas, se há criação...

(3) A existência de seres que se comprazem com sofrimentos infligidos sobre si por outros, é incompatível com um Deus cruel, que excluiria o masoquismo. Ora, o masoquismo é um facto; e se é pensável assim um Deus mais cruel, essoutro que seria relativamente menos cruel não é digno de ser considerado Deus.

(4) A existência de um único genuíno bem (no nosso sentido normal de bondade) seria incompatível com um Deus cruel, omnisciente e omnipotente. Mas a soma de males (no nosso normal, não sádico, sentido de maldade) seria de esperar muito maior; e a quantidade, variedade e grandeza dos bens que achamos na Criação seriam, de facto, males.

(5) A existência de um único genuíno bem poderia sugerir a existência de um Deus bom (ainda que menos poderoso), que limitaria o poder desse Deus cruel. Ora, dois deuses com poderes reciprocamente mais ou menos limitados, são indignos de serem considerados propriamente Deus, soberano ilimitado.

Julgo que ao ateu argumentador do “argumento do mal” interessará meditar um pouco no (4) supra. Mas, se insiste em que a soma de males é desproporcionadamente maior do que a dos prazeres, alegrias e toda a espécie de bondade feliz que pode viver-se já neste mundo, eu perguntaria: - se não há nenhum Deus, e a presença dos males é tão desproporcionadamente maior, que razão suficiente teríamos para pensar que é melhor viver que não viver, e qual razão moral eficiente para os contariar e fazer o bem ?

Quanto à pergunta do sr. Weisberg, a melhor e mais directa resposta já foi dada aqui neste blogue. Eis aqui outra tão boa, do judeu belga Albert Frank-Duquesne, que esteve internado em 1941 no campo de concentração nazi de Breendonk:

http://www.sombreval.com/docs/Via_Crucis.pdf

Se o leitor não lê francês ou não tem pachorra para ler livros (o prólogo deste é mais que suficiente resposta), então respondo eu. Onde estava Deus ? – Estava onde sempre está: no mundo feito por Ele, satisfazendo ao prometido no Sermão da Montanha; no mundo desfeito por nós, crucificado por amor dos homens, e Salvador de todos os homens crucificados por amor d’Ele.

terça-feira, agosto 03, 2010

O ARGUMENTO ATEÍSTA

Nos últimos cinquenta anos, adentro daquilo a que, na cultura desta parte do mundo, usualmente se chama “Filosofia”, tem sido o “problema do mal” o motivo do argumento mais brandido contra a existência de Deus (entendido este ao modo do teísmo hebraico-cristão).

Era de esperar, num mundo pós-Auschwitz e num século que terá sido o mais mortífero da História da humanidade. E, contudo, estão hoje vivos muitos mais humanos do que há cem anos; e talvez com uma “qualidade de vida” média superior à de há cem anos (ou à de qualquer outro tempo). É então o caso de a quantidade e enormidade do mal andarem assim tão desiquilibradas com a grandeza do bem, menos clamorosa mas de não menos inegáveis consequências?...

O referido argumento aplicar-se-ia então da seguinte maneira: é inaceitável que o sofrimento involuntário de um único inocente sirva de meio para que outros vivam melhor. Ora, não só um mas milhões de indivíduos têm sido usados e abusados no interesse de outros. Logo, não há nenhum Deus absolutamente bom ou eficientemente capaz de o impedir, e se de facto vivemos melhor isso deve-se apenas a nós e às circunstâncias dum mundo em que o progresso só seria possível a este custo. O leitor, se está lembrado da Lei Moral kantiana de que aqui temos falado, já reconheceu significado no “inaceitável” o moralmente inaceitável: nenhuma pessoa pode servir a outras pessoas como apenas um meio. ( Mas, do ponto de vista utilitarista, Auschwitz seria moralmente aceitável, se fosse o único meio para as gerações sobreviventes virem a beneficiar de um futuro em que tal horror não fosse mais possível efectivamente... )

Entre outros, o argumento deixa na sombra os pressupostos racionais essenciais da filosofia prática de Kant, como o da imortalidade da alma. (O inocente sacrificado pelo mau uso da liberdade humana, poderia ser imediatamente gratificado por Deus com um bem maior do que qualquer outro que os vivos neste mundo possam jamais conseguir.) -

O argumento do mal não costuma lembrar bens nenhuns, ao contrário da versão supra, que no entanto se limita a associar-lhe um corolário inevitável: se nenhum Deus nem quaisquer entidades “sobrenaturais” existem, então o progresso no bem (ou no mal) dever-se-ia exclusivamente a nós. Suponhamos então que muitos mais indivíduos vivem hoje melhor na Terra do que há cem anos, e que não há dúvida nenhuma quanto ao que conta como “viver melhor”. A mim parece-me claro que isto não seria um bem moralmente aceitável, se feito à custa de todas as gerações passadas, excluídas das agora privilegiadas com uma “vida melhor”. De aqui o fruste sentido de todas as utopias sonhadas para este mundo, a não ser que incluam a ressurreição dos mortos ou a perene manutenção da mesma “vida melhor”, nos vindouros. Mas, também este ponto do argumento deixa clara a necessidade (racional) do pressuposto kantiano (e cristão): seria moralmente aceitável, se cada geração dos vivos pensasse ter e de facto tivesse uma “vida melhor” que as anteriores; e se tal progresso fosse consentido e até encorajado pelas almas dos que progrediram deste mundo para um outro melhor, como um meio normal de os sobreviventes neste mundo merecerem chegar a esse melhor. (Uma perspectiva que se conciliaria pois inteiramente com a interpretação utilitarista também.) Assim era moralmente admissível que, na verdade, vivamos hoje melhor; e haveria motivos de esperança para que no futuro vivamos ainda melhor, e não apenas neste mundo.

Duas consequências. Primeira, teríamos aqui um progresso menos injusto e mais amplo do que supunha o argumento: colaboram nele os bons e os maus; os vivos e os mortos de todas as gerações. Segunda, tal progresso ressalvaria de facto a possibilidade (não a necessidade) da não existência de qualquer Deus: seria tão somente uma Lei fundamental do universo, da natureza do Cosmos.

Cabe perguntar: tal Lei é compatível com a existência real da liberdade no humano ? Parece que sim: quem não quer progredir, regrediria. (Pense-se na Lei do karma hindu e na teoria da “reencarnação”.) Mas, regrediria até onde? Até à erva e às bolotas, como ansiava o sr. marquês de Sade, e, portanto, até à perda de qualquer capacidade de vontade e de liberdade? Não necessariamente. Então, com o tempo, em um novo ciclo cósmico, refeito este mundo, um outro Sade poderia querer o bem em vez do mal ? Mas, este outro Sade seria o mesmo Sade? Qual seria o verdadeiro: o sádico a regredir para o porco e a bolota, ou aquele que progrediria para santo? Poderia ser o mesmo, ora progredindo, ora regredindo; mas, nesse caso, ponha-se a questão ética fundamental : – por que deve querer antes ser um santo do que um sádico? Se ambos, “bem” e “mal”, podem alternar infinitamente, e o pior que poderia acontecer ao malfeitor sádico era terminar em erva e bolotas... E é aqui que entra a lei da causalidade retributiva do Karma: quem faz sofrer outrem atrai sobre si o sofrimento, e quanto mais fizer sofrer, mais sofrerá. É evidente que, neste sentido, o sádico não podia terminar numa erval inconsciência bucólica, de que nenhuma vontade consciente o tiraria para “progredir”, a não ser o andamento impessoal da roda do Dharma. E, por outro lado, quanto às vítimas dele – e que teriam merecido serem maltratadas (eventualmente teriam sido violadores sádicos numa existência anterior) -, como é que poderiam progredir no caminho da virtude? Começando por não querer a vingança, consentir no perdão... E também do sofrimento dos animais seguir-se-iam algumas consequências curiosas para a compatibilidade com este esquema geral, e quanto à impressão de que estaríamos melhor hoje no mundo do que há cem anos.

Teríamos então, pelo exposto, uma lei natural que é uma lei moral, contra o pensamento de Kant?

O sofrimento é uma parte do mal, e parte nenhuma se é um sofrimento merecido, caso em que pode mesmo considerar-se um bem. Para Kant, tudo está na intenção pessoal: o que cada um quer ou não quer, à luz duma lei moral que implica a liberdade, não o fatal giro duma cósmica Roda. Ora, tudo isto é empiricamente insondável e psicologicamente sofismável (a tendência a não desconfiarmos da bondade das nossas intenções e outros “bons sentimentos”). Por isso não há nem pode haver indicadores empíricos nenhuns que garantam sermos globalmente melhores hoje do que há cem anos, e que não nos estamos activamente a preparar sofrimentos ainda maiores do que os que experimentámos no séc. XX. Pelo contrário, o que parece mais evidente é um progresso sempre maior na capacidade de nos fazermos a nós e ao mundo cada vez mais mal. Assim, voltando ao nosso argumento da quantidade e enormidade dos males contra a existência de um Deus absolutamente bom, omnipotente e omnisciente, suponhamos que o argumento era lógica e epistemologicamente bem sucedido: não existiria na realidade nenhum tal Deus. Fica então nas mãos do argumentador o ónus de explicar como é que o mesmo argumento não demonstra a existência de um Deus mau, omnipotente e omnisciente. Um Deus que teria criado os humanos e todos os mais seres sencientes para se comprazer no sofrimento deles, infinitamente...

Tal é o desafio que o sr. marquês de Sade lança ao ateu.



ADENDA

Se não há um Deus absolutamente mau criador do pior dos mundos possíveis, então:

(1) Ou os males deste mundo sobrepassam largamente os bens;

(2) Ou os bens deste mundo sobrepassam largamente os males;

(3) Ou bens e males equilibram-se neste mundo.

Se (1), era de esperar que a vida humana biológica (assumida como um bem e condição necessária de todos os mais bens possíveis) não tivesse proliferado, mas diminuído ou até extinguido.

Se (3), o “argumento do mal” poderia ser apenas um desabafo pessimista travestido de lógica.

Como (2) é inaceitável pelo argumentador, resta manter (1) com a restrição de que os “males naturais” não são tão maus que tivessem impedido a proliferação da vida humana (ou até que não faz sentido falar em “males naturais”. Uma tal restrição, porém, robustece (3).

Conceda-se em benefício do argumento que (1) é a verdadeira, e tal que sobrepassem tão largamente os bens que seria de esperar que – naturalmente – a vida humana já se tivesse extinguido. Como o facto é que não se extinguiu, cabe ao argumentador: dar uma razão suficiente para a actualidade de (1), e não (2) e (3), que são falsas; e como é que este facto pode ser compossível com (1). Cabe-lhe explicar também o seguinte: se há uma hipotética Lei natural que introduz um limite necessário para a quantidade e/ou perigosidade dos males, como é que o bem e o mal morais não são moralmente equivalentes (porquê fazer antes o bem do que o mal).

Mas há outra razão disponível: os males largamente maioritários nunca serão incompatíveis com a propagação da vida porque há um Bem sobrenaturalmente tão forte que providencia uma efectiva garantia. Logo, a existência de um Deus bom, não só é possível mas seria vitalmente necessária. (E o bem e o mal morais são o livre concurso de criaturas livres com a Providência de um Deus livre.)

Em suma, quer (1) ou (2) ou (3) são todos compatíveis com a existência de um Deus bom, omnisciente e omnipotente.

Por outro lado, um Deus absolutamente bom, tal que nenhum bem maior é concebível, decerto não pode deixar de criar o melhor mundo possível. Mas, relativamente a Ele, tal mundo é necessariamente menos bom. Nesta diferença fica aberta a possibilidade do mal. A conversão da possibilidade em efectividade não pode, porém, ser imputável a Quem é e só quer o melhor possível, sem o impor a criaturas livres. A liberdade de agentes humanos e/ou sobrehumanos pode conduzir a (1). Portanto, também por este lado (1) é compatível com um Deus absolutamente bom.

(A alternativa era não haver liberdade ou não haver criação nenhuma. O primeiro termo, deixo-o aos cuidados dos acreditam num Logos heractino ou estóico, ou num Destino. Já os considerámos aqui, e as dificuldades postas supra a uma Lei natural regradora do mundo moral aplicam-se-lhes. O segundo não parece adequar-se a um Deus que é por essência criador. Impõe-se a analogia com os humanos, se estes foram criados à imagem e semelhança de Deus: é da essência do poeta o ser criador; e se este realiza em conformidade com o que é, realiza-se, é livre... Também não seria difícil mostrar como é que a essência criadora de Deus se adequa melhor a Um que é Trindade de Pessoas do que uma entidade solitária, tendo presente que o conceito de pessoa é necessariamente relacional.)