SAUDADE
Ay flores, ay flores do verde pinhoD. Dinis
É um sentido do coração .... E outras vezes vem daquelas cousas que aos homens praz que sejam, às vezes com tal lembrança que traz prazer e não pena.
D. Duarte
Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu
Camões
Ah, saudade minha, luz divina!Frei Agostinho da Cruz
É legitimo argumento da imortalidade do nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra cousa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir. Sendo esta tal a mais subida das saudades humanas: como se disséssemos um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apetecemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e temporalmente o que está de nós remoto e incerto.
D. Francico Manuel de Melo
É um finíssimo sentimento, e pena de um bem ausente com desejo de o lograr. Não disse de um bem perdido, porque também há saudades de bens ainda não possuídos, nem perdidos, nem esperados.
Rafael Bluteau
Saudades de tudo
António Nobre
Tudo é saudadeTeixeira de Pascoaes
E também a natureza angélica da Saudade então de todo e finalmente estará declarada.
Dalila Pereira da Costa
Em 1911, descia um velho do grande Marão que não dá palha nem grão a revelar uma “religião lusitana”, “anti-romana” e entronizar uma “Virgem redemptora” chamada “Saudade”. Doze anos depois, o filósofo Leonardo Coimbra, amigo de Teixeira de Pascoaes e um dos grandes patrocinadores do movimento da Renascença Poruguesa , repunha a revelação “lusitana” no quadro da maior razão portuguesa e católica:
« Mas há uma Religião que é a mais alta e nobre expressão da Saudade, porque apresenta o homem como um viajante desta vida em procura da verdadeira Pátria do Infinito.
É o Cristianismo.
O Éden era a Pátria, donde o homem foi escorraçado como consequência da revolta da sua vontade contra a união amorosa com o Deus criador.
Tombado do Éden, como fora o anjo rebelde da presença de Deus, eis que o homem caminha, em exílio, por entre a matéria rebelde. Esta cai para a Morte e, de olhos ainda deslumbrados pelo Sol da Vida, vê o desfazer-se em poeira dos mundos pelo Espaço na agonia dum coração ameaçado.
O seu coração que fora de luz sente-se dum barro que o Vento vai pulverizando; mas a Saudade do Éden é o bendito óleo que faz arder ainda aquela luz originária. »
A luz divina, de frei Agostinho da Cruz.
E em Agosto de 1955, na Revista Filosófica de Coimbra, o professor Sílvio Lima corroborava:
« O drama da saudade está numa atitude ou comportamento vivencial de inadaptação não resignada perante o presente; o eu, retrotraído e retroflectido pela lembrança contemplativa e ensimesmada de algo ausente e amado, debate-se como pássaro ferido contra a muralha do presente, porque deseja que esse presente lhe restitua como libertação e salvação (a salutate bíblica, donde proveio o vocábulo “saudade”, no pensar da sábia D. Carolina) o “paraíso perdido”. A tortura punitiva de Adão não jaz só na lembrança do éden terreal que o seu pecado dele distanciou; reside ao mesmo tempo na ansiedade queimante de regressar ao Reino de Deus....» (itálicos do autor).
Sílvio Lima respondia ao seu amigo e professor da mesma Universidade de Coimbra, Joaquim de Carvalho: assim a saudade não era sobretudo retrotensa (voltada para o passado), mas “indivisa e simultaneamente” – intensa e protensa. Em dois artigos anteriores, publicados na mesma revista – A Problemática da Saudade, de 1951, e Elementos Constitutivos da Consciência Saudosa, de 52 – Joaquim de Carvalho como que retirara as escoras do dique, e represadas torrentes duma copiosa literatura ensaística encheram os campos culturais português e galego (documentável na Antologia de 1986, por Afonso Botelho e António Braz Teixeira). A esta manobra não faltou a mão, mais enrugada mas não menos entusiasmada, de Pascoaes, na última conferência pública que proferiu, em Lisboa, Março de 1952, o mesmo ano do seu trespasse: espécie de síntese e testamento do seu pensamento Acerca da Saudade (publicada em 1973). Até parece que se tinha entrado na Era Lusíada, que o profeta do Marão anunciara em 1914, e reafirmava agora.
Contudo, após 1986, foi o deserto...
O filósofo Sílvio Lima obtemperava também ao seu confrade académico que haveria Saudade, não apenas na adultidade ou na velhice, mas já na criança, alegando então recentes descobertas da investigação psicológica ( entre outros, cita “João Piaget, o finíssimo perscrutador suíço da psique infantil” ). Podia ter citado antes o nosso Camões ( As lágrimas da infância já manavam / Com uma saudade namorada ), ou Pascoaes ( Infinita lembrança / Que enchia a minha alma de criança ). Chega depois a questionar-se sobre se a “infra-estrura biológica” de certos traços comportamentais daguns animais não teria já “notas vagas, surdas, infra-liminais”, incoações pré-humanas da humana vivência saudosa. E mais ainda, considerando, « não o Deus dos filósofos [mas sim] o Deus vivo, pessoal, não se poderá falar da saudade em Deus e de Deus ? Diz o nosso ardente Frei Tomé de Jesus: “Christo chora como o fogo que não tem lenha”. Se Adão verte saudades de o “paraíso perdido”, Deus – como Pai amantíssimo – sofre também dos seus pecados, da sua “ausência” e anela o pronto regresso do “filho pródigo”; por isso, num infinito sacrifício de amor, desce até à humanização na pessoa de Cristo. » Uma proposta também acolhida, em todos os sentidos, pelo hetrodoxo e peremptório Pascoaes: « Só existe a Saudade de Deus. »
Teríamos pois que a Saudade abrange todos os seres, tal como todo o tempo.
“Cada um considere seu coração no que já por ocasiões várias tem sentido”, aconselhava-nos o leal conselheiro, el-rei D. Duarte. Ora, que cousas a homens mais praz que sejam senão recolher a reviva flor da Alegria florida no coração, intacta, imune a qualquer velhice ? Dar-se-á então que perpétuas saudades são compatíveis com esse perpétuo retorno do mesmo, de que falava Nietzsche ? O meu caro leitor lembrará sua conta de momentos vividos tão profundamente aprazíveis que clamam pela eternidade, “profunda, profunda eternidade”. Pois então suponha que tornava a eles, tais quais foram, infinitas vezes, por um tempo infinito... – Que infinita e desaprazível monotonia se, no entretempo, não esquecesse num esquecimento total ! Mas a lembrança é consubstancial à Saudade, e por isso a correlativa esperança há-de ser não só do mesmo, mas conjunta e conjugada com uma real alteridade. Não é possível o esquecimento, e a petição saudosa é a petição de “uma vez mais” que, se não repetida temporalmente, é petição contra tempo ou para além do tempo: as perpétuas saudades são da eternidade, não duma temporal infinitude; ou então, se repetida temporalmente, “uma vez mais” seria outra vez melhor, sempre melhor, infinitamente...
A mais percuciente objecção não seria de Nietzsche, mas a do leitor encanecido e encavernado neste deserto: -“Nasci após 1985, e nada me praz que seja ou o que me praz é nada, porque estou aterrado" ...
Respondo: - Então, sem nenhuma boa lembrança que apeteça a “profunda eternidade”, resta a boa esperança: dos bens ainda não apetecidos, nem perdidos, nem esperados, com que apetecemos o que não havemos visto jamais, nem ainda vivido, e temporalmente o que está de nós remoto e incerto.
Só há uma ermada terra proibida em que a Saudade se não pode plantar: onde não há desejo nem desejado. Mas bem é desejar o que deve ser desejado, sob pena de termos um menos
« suave pungir de acerbo espinho » (Garrett), chagados duma desesperada nostalgia que muitas vezes é confundida com a Saudade. Se a ética desta não tem ficado muito transparente nas largas centenas de páginas da citada Antologia de 86, será isso porque andamos sempre mais sentidos do sentido do coração que reflectidos da razão? Ou talvez porque a luso-galaicos ela nos parecerá cousa muito natural, desnecessitada duma kantiana vontade cuja lei moral parece apartada da Natureza: - « pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Paulo Aos Romanos 8,19)...
E as frols do verde pino, ó Dom Denis ?
A edénica esperança do FuturoPascoaes
A Saudade é a nossa Flor, a Flor dos LusíadasPascoaes
O nome desta flor sucena ou cecem se conserva entre nós mudadas poucas letras de Susana, que em hebraico se chama. Os latinos a nomeiam Flor real, Flos regia, por ser mais que todas formosa e suavíssima em o cheiro. Entre nós significa saudades, nome que a língua espanhola não tem, nem os latinos....
Frei Isidoro da Barreira
[ Sobre a Era Lusíada o que Pascoaes repetiu foi isto, em A Velhice do Poeta, assinada de 28 de Maio de 1951: « Sim, a Era Lusíada aproxima-se.» E, na conferência Da Saudade, no ano seguinte de 52: « E teremos o advento da Era Lusíada, anunciada por mim, em Abril de 1914.» O Poeta falava, pois, do futuro.]