terça-feira, setembro 28, 2010

TÉDIO E NIILISMO

O arquipoeta Fernando Pessoa deixou em poesia uma Mensagem aos lusíadas do século XX que ainda se tivessem e quisessem portugueses, como ele ainda era. E em arca, para o herdarmos a seu tempo, deixou-nos em prosa um não menos extraordinário livro, a todos os títulos, começando pelo título. – O Livro do Desassossego, como vamos vendo a cada nova edição, era um livro para ser variamente conjunto, composto e como co-autorado pelos diferentes herdeiros seus dedicatários e dedicados leitores: diferentes pessoas que, no século XXI, já nada tivessem a ver com lusíadas nem com a pessoa autora da Mensagem, como ele era...

Quem são estas tais pessoas, em geral ? Julgo serem aqueles mesmos que Nietzsche antevia irem enchendo os séculos XX e XXI: os “últimos homens”. O leitor nietzscheano sabe que o grande poeta alemão não era nada meigo para eles; mas, como não era mau homem aquele a quem os italianos de Turim chamavam “il piccolo santo”, lembremos que sempre acabou por acolher e dar lugar na Caverna de Zaratustra, entre outros, a um desses “últimos homens”, a quem chamou “o mais feio dos homens”. Quanto ao nosso grande poeta universal, tinha ternuras de meridional, e fez mais : reservou na arca uma multidão de fragmentos dedicados à multidão dos homens fragmentados.

Quem é o “mais feio dos homens” ? – Apetecia-me responder a Zaratustra-Nietzsche, brincando: - É “todo o mundo e ninguém”!... Mas respondo ao meu leitor, seriamente: - é quase todo o mundo, porque o alemão de facto via com aquilina visão a enchente maré do futuro, que é o presente desta parte rica e enfartada do mundo nosso ocidental em que vivemos. E é ninguém porque o “último homem” é menos que um Zé Ninguém : - nem é quem (até ao séc. XX) reconhecíamos como humano nem, muito menos, o “sobrehumano”, que ainda não conhecemos ou reconheceríamos. É como nada o “mais feio dos homens” : como um cadáver em decomposição do humano, náufrago afogado na enchente maré do niilismo.

Um dos textos mais desassossegadores que eu conheço duma posição niilista é o de certo ajudante de guarda-livros na Baixa lisboeta, que já aqui citei completo:

« O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia. »

- Aqui está. A experiência do tédio, nestes termos, parece-me totalmente inexplicável adentro do quadro duma metafísica naturalista: a vacuidade intramundana de qualquer existência actual ou possível, contrasta a referência à plenitude da experiência extática e como que ilumina a carência ontológica e o desvalor axiológico de toda entidade ou situação que existam fora parte do ser pleno e absoluto... que Deus é; como uma contraparte existencial negativa dessoutra experiência duma plenitude de ser e realidade incomensurável com qualquer intramundana.

Por outro lado, parece que a posição sobrenaturalista não fica mais bem colocada: o “cansaço” parece ser um desgosto de toda e qualquer entidade, existente ou essente, mundana ou não mundana. Será? Eis o que temos de ver melhor. –

Ti theós; ho ti to pán. O que é Deus ? – perguntava-se o grande poeta Píndaro (séc. V a. C.) num fragmento salvo em um do cristão Clemente de Alexandria; e a resposta é a paradigmática de toda uma cultura merecidamente chamada pré-cristã: ho ti to pán – é o todo. Pedras, árvores, animais, homens e deuses, o subconjunto de todas e o suconjunto de todos os seres celestes formam um conjunto que não é subconjunto nem de si próprio nem de outro conjunto maior pensável possível: e esta totalidade é Deus ou o propriamente divino. Mas, desde Parménides até Aristóteles (este com o cósmico “primeiro motor”, imóvel) introduzira-se uma diferença : a totalidade conjunta do Cosmos tem uma physis (natureza) diferente dos elementos cósmicos do conjunto – é eterna, imóvel, imutável, una, contínua, homogénea, perfeita como a linha de uma “esfera bem redonda” (um discípulo de Parménides, Melisso de Samos, dirá mesmo que é assomatón, sem corpo).

Ora, é tudo isto que parece ser recusado pelo nosso ajudante de guarda-livros: isso que enchia de maravilha e piedosa reverência um grego antigo, causa-lhe a ele... tédio. Como já disse, um tédio assim é totalmente inexplicável no quadro daqueles ateus que hoje adoptam a mesma (mais empobrecida) cosmovisão naturalista : compreender-se-ia a recusa deste ou daquele elementos existentes (os sujeitos ao ciclo do nascimento e renascimento, por exemplo), mas a negação da totalidade – o ser – é impensável porque nos deixaria com um impensável nada (se nada, como e porquê alguma coisa teria de vir a existir ou a ser?). Os metafísicos naturalistas pensam como se a filosofia cristã nestes dois mil anos não tivesse feito nenhuma diferença...

Este impensável nada pode (ou mesmo tem de) ser pensado como radical Alteridade. É isto que faz a diferença. Porque esta Alteridade não deve ser pensada como mais uma coisa que, em si mesma, pode ser pensada como existente (a multiplicidade dos elementos cósmicos) ou essente (a physis ou natureza conjunta desse elementos); mas como alguma coisa que, em si mesma, por radicalmente diferente e incomparável com o todo, era humanamente impensada e permanecia como um “nada”. Mas podia (e devia) ser pensável como Razão Suficiente de as coisas existirem como esse “todo” e não outro qualquer, isto é: como a Criadora desse Cosmos que tanto maravilhava os gregos (e não gregos). ( Não é que os gregos desde sempre não suspeitassem de que alguma coisa ficava por explicar: chamaram-lhe “Destino”, “Necessidade”... ) Carecemos racionalmente de tal Razão Suficiente porque, sem ela, não só a questão – “Por que há alguma coisa, e não nada ?” – ficaria sem resposta racionalmente suficiente, como (e é o ponto que desejo sublinhar) a própria possibilidade de colocar-se uma tal questão (implicando um “nada”) seria inconcebível e de facto jamais concebida.

Ora, a vacuidade contemplada pelo nosso Bernardo Soares abrange o todo (to pán) grego, ou atinge também aquela Alteridade afirmada pela tradição hebraico-cristã ? Suponhamos que sim ( a “vacuidade de outra coisa qualquer”...). Neste caso, a vacuidade não tem solução: o tédio seria a só negação de tudo o humanamente ou divinamente pensável, existente ou essente, ou... “outra coisa qualquer”. Negação ou recusa que, em casos mais extremados, pode ser suicida ou homicida. Mas o sentimento, enquanto tal, não pode ser nada e, por isso, terá uma razão qualquer de ser tal. Suponhamos, no entanto, ainda a hipótese mais favorável ao niilista : não tem nenhuma razão; seria um puro sentimento de recusa total e absoluta de tudo. Teríamos, pois, um sentimento gratuito. Ora, uma vontade que, sem causa ou razão nenhumas além do que por si mesma afirma ou nega, e que tanto pode ser causa de querer alguma coisa, como (neste caso) de querer nada; de querer alguma coisa possível ou, mesmo, o impossível... – eis o que parece poder identificar-se com certa cousa/causa que temos aqui destacado várias vezes nestes postais: - a Liberdade.

Mas que estranha liberdade será esta, amigo leitor, que tanto pode querer nada como poderia querer tudo, que tanto poderia estar “cansada” de tudo, como de nada e querer... alguma coisa diferente, nem que fosse diferente só “da própria alma” ?... Uma tão soberana liberdade é humanamente possível?... É o desejo humano de querer como quer a gratuita e livre vontade própria de um Deus?...

Ah, este nosso enclausurado Bernardo Pessoa foi longe! Como é que um tal poderia ser “o mais feio dos homens” ?...

sexta-feira, setembro 24, 2010

O VERDADEIRO FILÓSOFO



Na cívica prestação de contas da perigosa investigação a que se dedicara e lhe mereceu a morte, Sócrates, diante o tribunal ateniense, fixou em célebre e concisa máxima os termos do balanço final: - “Só sei que nada sei.” O dito é justamente famoso e memorável, porque a conclusão socrática é a que espera qualquer pessoa racional, de qualquer tempo, completa e sinceramente dedicada por si só à filo-sofia – ao amor do saber, aliás próprio de qualquer normal indivíduo da espécie do sapiens. Mas os citadores da máxima socrática habitualmente omitem ou ignoram duas conexas atestações do ateniense na mesma ocasião: Sócrates sabe que, entre todas as classes de cidadãos que inquiriu, só entre os artesãos e socialmente menos reputados achou alguma sabedoria; mas não era este saber manual e oficinal que faria do operário Sócrates, ex-pedreiro escultor e filho de escultor, “o mais sábio dos homens”, segundo a palavra do oráculo que o tirou de o trabalho humilde e sossegado, para o fazer “parteiro de almas” e ganhar com isso a morte. A outra conclusão quase sempre omitida é esta: - « É possível, senhores, que na realidade só o deus sabe ».

Já o pré-socrático Xenófanes de Cólofon (nascido no séc. VI a. C.) chegara à conclusão que « Nenhum homem jamais soube ou saberá a verdade acerca dos deuses e de todas as coisas das quais eu falo (...). A opinião reina sobre tudo. » No mesmo sentido, o pitagórico Alcméon de Crotona (princípios do séc. V a. C.): - « Das coisas invisíveis e das mortais só os deuses têm conhecimento certo; aos mortais só é permitida a conjectura. ». Crítico de Xenófanes e Pitágoras, o efésio Heraclito coincide no mesmo: « Não há conhecimento na condição humana, sim na divina.» E na viragem dos sécs. V para IV, Demócrito: - « Na realidade, nada sabemos». Já no séc. III a. C., ao então regente da Academia platónica, Arcesilau de Pitane, parecia-lhe a máxima socrática demasiado ambiciosa, e como corrigia: « Só sei que nada sei... e nem isto sei.»

Temos nós outros hoje muita informação aferida, certificada e bem sucedidamente utilizada nos mais variados domínios, a começar no básico da informação sensorial com que nos orientamos no mundo natural e social. (Mas o mesmo podiam dizer os gregos de há dois mil e quinhentos anos...) Tudo isso é de comum senso e experiência. Mas também experimentamos que há uma distância entre ter uma informação, pragmaticamente agir em função dela, - e a experiência do saber. Uma coisa é, por exemplo, termos informação do que Xenófanes e Arquesilau disseram; outra uma vivida e pessoal experiência reconhecida e identificada nos mesmos termos em que eles o disseram. Saber e saborear são etimologicamente o mesmo verbo; mas o interesse do filósofo ( o “amigo do saber” ) não se contenta só com o paladar seu: interessa-lhe saber se há e que cousa/causa será que, fora de si, justifica esse paladar próprio seu, ou se tal se deve apenas à particular ou geral configuração da sensibilidade e entendimento humanos. Por outras palavras, interessa-lhe a verdade e a realidade, não apenas a subjectiva ou intersubjectiva maior ou menor certeza.

Saber que não se sabe, e nem sequer isto, abre assim a possibilidade para algum saber... que Sócrates e os outros citados acreditaram ser capacidade divina, não humana. Uma experiência que a filosofia cristã haveria de reviver e corroborar, creditada na palavra d’Aquele que de Si mesmo disse ser Caminho, Verdade e Vida.

Todo este esquisso vem a propósito da “demonstração” da existência ou não existência real de “Deus”, de que ultimamente falámos, serve-me para dizer que, quanto a mim, me conto entre aqueles que não acreditam haja na razão humana razão suficiente para – em verdade – determinar o que na realidade existe ou não existe, a começar nas mais comezinhas coisas da nossa habitual e comum consciência vígil. Já no séc. VI a. C. o filósofo taoísta chinês Chuang Tzu, tendo certa noite sonhado que era uma borboleta a voar, pedia, depois de acordado, aos seus discípulos que lhe demonstrassem que ele não era nesse momento uma borboleta a sonhar-se homem... Dois mil e siscentos anos depois, a dificuldade do problema mantém-se tal e qual. Continuamos no mesmo pé que o velho Parménides consignou à condição dos mortais: temos múltiplas e variadas percepções sobre coisas a que damos nomes, - mas falta-nos o critério decisivo para determinar acerca dessas coisa o “que é” ou “não é”. Portanto, se estamos em apuros para demonstrar que nós próprios não somos cérebros ligados a um computador num Mundo-Matrix, parece insciente ou fátua presunção “demonstrar” que Deus existe ou não existe. Ao invés, se um tal Deus existe – Esse que na tradição hebraica e cristã tem sido pensado como plenitude do ser, verdade e realidade absolutas -, caberia mais imediatamente perguntar é que género de existência será a nossa, de momentaneamente aparecidos e desaparecidos : “sombra de um sonho é o homem”, dizia o grego Píndaro; “ilusão das ilusões, tudo é ilusão”, dizia o judeu Qohélet.

Contudo, se Deus existe e tem um particular interesse pelos humanos e o mundo em que vivemos, é razoável supor que de algum modo Ele se nos desse a conhecer e nós de algum modo O conheçamos. Na série de postais que há tempos iniciei aqui, ficou o leitor interessado com um argumento (não esquecer que “argumento” pode ser uma narrativa, uma história) significativo desse possível conhecimento possível: aquela viva experiência humana que creio ser a fonte originária, pessoal e social, da religião como da arte ou da filosofia (em todos os povos). E, se Deus existe e é uma entidade pessoal e criadora, com particular cuidado pela Sua Criação e pelas criaturas “à Sua imagem e semelhança”, parece-me razoável supor que a história e narrativa dessa experiência evoluiu no tempo e, a seu tempo, tenha concluído numa especialíssima e extraordinária experiência do encontro entre Deus e a sua excepcional criatura: tal o que eu creio ter-se dado há dois mil anos na terra palestinense e se vem prolongando e prolongará pelo tempo, até à sua perfeita consumação na eternidade atemporal.

Teríamos pois que, ao amor pelo saber dos humanos corresponderia um saber pelo amor manifesto em Cristo ao mundo. Não repugna acreditar que tal encontro com o humano não exclui nem poderia excluir a raciocinadora razão do animal “racional”. Compreende-se, por isso, que ao longo do tempo, muitos argumentos conceptuais se tenham proposto demonstrar o indemonstrável, mas nem por isso menos inacessível aos que no seu coração crêem e querem.

Mas... pode não haver Deus nenhum. Que grande e pacificadora revolução haveria no mundo se não perdêssemos a consciência da diferença (intransponível) entre as relativas certezas da nossa limitada experiência e a verdade/realidade! Tal é (parece-me) a revolucionária e terapêutica função da melhor filosofia humana, da cepa socrática que nosso patrão Diógenes também cultivou. Uma filosofia eminentemente prática, aplicada a edificar a firme autoridade do espírito sobre as paixões da alma e as necessidades do corpo.


[ Na imagem em cima: relevo dum sarcófago romano do séc. III, representando a figura de Cristo como “o verdadeiro filósofo”. Assim se lhe refere o Papa Bento XVI na sua encíclica Spe Salvi (2007) ]

terça-feira, setembro 21, 2010

LITERATURA POPULAR E LITERATURA ERUDITA

Apesar da solene e selecta intransigência do Doutor António Ferreira e dos classicistas letrados que começavam a apelar mais a mitológicas musas da antiguidade do que à música dos versos cantados e instrumentalmente acompanhados (apelando a musas mais acesíveis da actualidade...), - no século XVI ainda não havia divórcio entre a poesia “popular” e a “erudita”. Baste lembrar dois nomes: mestre Gil Vicente, de quem José Leite de Vasconcelos disse - "Conhecia directamente todos os recantos da etnografia: costumes, superstições, literatura, linguagem"; e, também no XVI, Gonçalo Fernandes Trancoso, dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, inspirados em contos populares, que o autor coligiu para distrair os serões lisboetas duma cidade assolada pela peste - a mesma que levou Ferreira.

Como os velhos trovadores palacianos teriam nas suas Cantigas de Amigo refrães que andavam nas bocas do povo, assim uns tantos motes notados como “alheio” nas Flores do Lima de Diogo Bernardes teriam sido colhidos de anónimas cantigas populares da cultura tradicional. Este, por exemplo:

Já não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida;
Ando perdido entre a gente:
Nem morro, nem tenho vida.

Eis a primeira décima da glosa de Bernardes:

Depois que meu cruel fado
Derribou uma ‘sperança
Em que me vi levantado,
No mal fiquei sem mudança
E do bem desconfiado;
O coração que isto sente
À sua dor não resiste,
Porque vê mui claramente
Que, pois nasci para triste,
Já não posso ser contente.


No século XX, o poeta popular alentejano Manuel António de Castro (1885-1972), conhecido por “Castro da Cuba”, pegava destarte o mesmo mote:

Quebrou-se o laço que era
Meu enlevo de viver;
Quero, não posso esquecer
A dor que me dilacera;
Passa doce a Primavera,
Para mim é-me indiferente,
A minh’ alma já não sente
Perfume dessa beleza:
Galvanizou-se a tristeza,
Já não posso ser contente.



Manuel de Castro não era um poeta iletrado (como logo inculca no vocabulário: “enlevo”, “dilacera”, “indiferente”, “galvanizou-se”...), e diz-se até que tinha “uma arca cheia de livros”. O antropólogo Paulo Lima, um bom conhecedor actual da nossa poesia popular, cita o exemplo acima como “prova cabal” da influeência e reutilização da literatura escrita erudita pelos poetas populares e, portanto, da não relevância da “dicotomia escrita versus oralidade”.

É possível. E pode ser que lá na sua arca o poeta cubense tivesse a edição de 1945 das Rimas de Bernardes. O que eu sei é que a mesma quadra que o limiano dá como “alheia” foi conservada pelo povo ao longo dos séculos, e o citado Leite de Vasconcelos não a deixou por recolher no seu Cancioneiro Popular Português (com a só alteração no último verso: Não morro, nem tenho vida.) E dá-a como colhida em Alcáçovas, concelho de Viana do Alentejo, poucos quilómetros afastada de Cuba...

Teríamos porventura aqui o caso de um perfeito (e raro) intercâmbio entre o “popular” e o “erudito”.

Este Manuel de Castro é o mesmo que já aqui eu citara, a propósito dum poeta – António Corrêa d’ Oliveira – cuja obra considero que nos dá no século XX a mais íntima e artisticamente realizada conjunção do “popular” e do “erudito”, a ponto de vermos bem o que há de postiço e surpérfluo na discriminativa qualificação. De facto, cumpre reconhecer a regra: os nossos grandes criadores literários, de qualquer época, reviveram na sua obra tipos humanos e formas de expressão “populares”, e até com denunciado carácter “regionalista”. Talvez aí estivesse uma natural condição da sua grandeza. O que eu creio é que o criador literário, ainda o mais letrado e erudito, dispunha assim de condições para ser uma autorizada voz do seu povo. (Mesmo os aristocratas, a começar nos próprios reis, desde o leite que mamavam das amas que eram mulheres plebeias, viviam em próximo e directo contacto com as classes populares).

Mas essa cultura popular desapareceu, graças à cultura tecnocientífica emergente do Iluminismo e da Revolução Industrial, que destilou e embriagou os povos com o grande mito moderno da “Educação”.

Desaparecidos ou atenuados os particularismos étnicos irredutíveis da cultura popular, a favor do avigoramento crescente da cultura cosmopolita, há condições para que na voz dos melhores criadores do futuro transpareça mais e melhor o que já antes era mais ou menos transparente nos melhores de antanho, fossem um António Aleixo ou um Fernando Pessoa : - a universal condição humana.

Mas não sei como o poderão fazer senão ainda na sua própria e distintiva língua natural. Ora, o perigo não está no bi ou multilinguismo (é de lembrar os nossos sécs. XVI e XVII), - mas na não aprendizagem sólida de nenhuma língua natural. Neste caso, depois da cultura “popular”, desaparecerá a seguir aquela cultura “erudita” centrada num nome sintomaticamente caído em desuso: “Humanidades”. Com o empobrecimento da mais espontânea e natural comunicação entre os humanos, e o investimento desiquilibrado na instrução e prática das linguagens artificiais (lógico-matemáticas) da tecnocultura cada vez mais dominante, as consequências mais que previsíveis estão aí já patentes diante nós : - desumanização e barbárie.

sexta-feira, setembro 17, 2010

UM BELO FEITO DA NOSSA HISTÓRIA ULTRAMARINA




Os anos de 1974-75 foram extraordinários, talvez únicos na nossa História: a comoção social e o alvoroço político que então varreram Portugal de norte a sul, por uma vez parece terem envolvido no mesmo geral e animado debate, quer a maioria dos sempre indiferentes à “política”, quer a minoria dos interessados que os mais de quatro decénios de ditadura legalizada em “Estado Novo” tinham obrigado a falar furtivamente ou a silenciar. E basta referir este pormenor significativo: quem por esses dias chegasse ao Rossio de Lisboa, não poderia ficar senão espantado com a quantidade de gente esparsa em rodas de discussão política acalorada, enchendo os passeios, o pavimento central da praça, ou mesmo transbordando para a rodovia, os automóveis e autocarros a desviarem dos grupos, com lento cuidado de não atropelarem pessoas e discussões... (Só, no seu canto habitual, à boca da rua do Carmo, solitário, postava-se um homem com uns cartazes dependurados do pescoço, a cobrirem-lhe a frente e as costas, todos escritos com citações da Bíblia, que ele segurava numa das mãos; com a outra, empunhava um velho e roufenho megafone, por onde o que mais se conseguia ouvir era... “Fim do Mundo”. Era ele quem falava mais alto, mas era um fala-só....)

Era o tempo dos golpes e contra-golpes político-militares, das nacionalizações, manifestações e contra-manifestações, das ocupações de casas e terras, dos avanços e recuos do atrabiliário “processo revolucionário em curso” que, mais ou menos improvisado, procurava abrir caminho entre nós para o “socialismo”. (Em Almada, a aristocracia operária da Lisnave, saneados os administradores capitalistas, vinha continuar as intermináveis discussões dos plenários perpétuos para as cervejarias da vila, no meio das litradas de cerveja e quilos de marisco...). No “Verão quente” de 1975 começavam a chegar a Lisboa os cerca de quinhentos mil refugiados de África, brancos e pretos, em aviões e barcos; e com eles chegavam das costas de Angola ao nosso Algarve, em traineiras sem radar nem cartas de marear, subindo à vista do litoral africano, os descendentes dos navegadores henriquinos... E eram centenas de contentores empilhados e alinhados à beira do Tejo, entre Alcântara e Belém. (E nos jardins de Belém, espojados por bancos e canteiros, bandos de miúdos vindos da Casa Pia. De vez em quando, levantavam-se e aproximavam-se de automóveis, que passavam e os levavam... Nessa altura a pedofilia não preocupava ninguém, nem os “anti-fascistas” que, antes de 74, tanto se tinham escandalizado com os Ballets Roses...). Estávamos então por cá entretidos e entontecidos com as voltas e reviravoltas da nossa “revolução” quando, não sem aviso e sem a segurança da caução norte-americana, a Indonésia invadia e ocupava Timor-Leste. Mas nem as impressivas reportagens do grande repórter Adelino Gomes, que lá esteve por essa altura, nos tiraram um pouco do embriagado desvairo colectivo em que vivíamos.

A invasão e ocupação de Timor não eram inéditas. Já entre finais de 1941 até 45 a ilha fora invadida e ocupada, primeiro por australianos e holandeses (a metade ocidental de Timor era então holandesa), depois pelos japoneses. E foi um dos motivos que, ao longo da 2ª Guerra puseram num fio a sinuosa e difícil estratégia de neutralidade que, desde o princípio, Salazar quisera a todo o custo para Portugal (e Espanha). No caso timorense, o ditador, então à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros (coadjuvado pela vasta experiência e competência do respectivo secretário-geral, Luiz Teixeira de Sampaio), e a diplomacia portuguesa jogaram habilmente com o volfrâmio e as facilidades concedidas aos Aliados nos Açores, para conservarmos a neutralidade e a ilha: os japoneses renderam-se à administração portuguesa, e os australianos acabarm por retirar. Em Dili restavam três casa em pé... Depois, tudo continuou como dantes. Havia em 1970 cerca de meia centena de colonos portugueses radicados e mestiçados, que reproduziram no século XX o modelo ruralista e patriarcal da colonização do Brasil e de S. Tomé no XVI, mas com trabalhadores assalariados, não escravos. Os outros eram funcionários administrativos superiores, ou militares, em comissão temporária, alguns afastados do continente por motivos disciplinares. O desinteresse e o abandono, desde os tempos de D. Manuel I, foram sempre a política dominante até princípios dos anos 60. Após Abril de 74, o processo de “descolonização”, improvisado com ignorância crassa das reais condições no terreno, foi, como em África, uma catástrofe de pura desorganização e cobarde abandono, que a Indonésia aproveitou (aliás mais forçada pelos acontecimentos do que por empenhada vontade própria). Uma catástrofe que custou aos timorenses muitos milhares de mortos e refugiados (há quem fale em duzentos mil).

Acontece que a Indonésia, geograficamente mais próxima, era e sempre fora muito mais estaranha e longínqua para a gente timorense do que Portugal, cuja bandeira tinham como objecto sagrado. Quanto a nós, em termos de opinião pública, só em 1991, após o massacre do cemitério de Santa Cruz, acordámos para as respnsabilidades que tínhamos; e é a partir de então que diplomaticamente vamos conseguindo interessar e mobilizar mais apoios internacionais para defender o Direito à Autodeterminação que a heróica resistência armada timorense mantinha vivo no terreno. Não são ainda publicamente conhecidos os pormenores dessa campanha diplomática, que já vinha dos anos 80, sob a égide das Nações Unidas, em que a nossa diplomacia, com paciência, firmeza e habilidade, soube aproveitar a conjuntura internacional. O que se sabe é que, em 1999, conseguimos levar a Indonésia a um referendo no território; com cerca de 80% de votos favoráveis à independência, foi esta efectivamente conseguida em Maio de 2002, não sem mais massacres e deportações da martirizada população timorense. –

O que se sabe é isto: - que apenas com argumentos de Direito e de humanidade, um pequeno Estado lá dos confins da Europa, sem qualquer força de ameaça militar, conseguiu levar o Império javanês a largar de mão e a consentir na independência de metade de uma pequena ilha, no outro cabo do mundo!...

Eis o que é para mim um grande e belo feito da nossa História ultramarina. E não sei se há outro caso assim comparável no mundo das lupinas relações políticas entre os povos. Nem faltou entre nós, nos anos de 1999-2000, um levante de comovente e unânime mobilização popular, que me lembrou os dias magníficos de colectiva desopressão e festiva esperança da inolvidável semana de 25 de Abril a 1 de Maio de 1974. Que tenhamos sabido levar a cabo um tal feito numa hora em que estávamos reduzidos a um encolhido apêndice menor da Europa, - eis o que não causa menos admiração, e não deixa de ser motivo de esperança para o nosso futuro lusíada.

Resta desejar que não larguemos agora mais de mão a mão que os timorenses sempre nos estenderam.



[ Este postal é também uma comovida homenagem:

- ao grupo de timorenses que, numa noite fria de 9 para 10 de Junho de 1978, a pés nus e em trajes indígenas, fizeram durante horas, imóveis, em silêncio, com impressionante dignidade, uma guarda de honra ao túmulo de Luís de Camões;

- ao tenente-coronel do Exército Português Maggiolo de Gouveia, fuzilado em Aileu, Dezembro de 1975, exemplo daqueles soldados que Camões cantou e contou entre os “varões assinalados”;

- ao cooperante em Timor, professor José Mattoso, o historiador dessa figura modelar da resistência armada timorense que foi Konis Santana, e aos outros professores portugueses que ele lá viu manterem-se em “condições miseráveis”;

- ao lusíada Ruy Cinatti, timorense do coração e no sangue.

A imagem de Nossa Senhora é a que está no alto do mais alto monte de Timor. ]

quarta-feira, setembro 15, 2010

VINTE TESES PARA A FORMAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA DE PORTUGAL


[ No título do postal anterior deixei implícita lembrança de uma notável obra – O Enigma Português (1960) – de Francisco da Cunha Leão, que a complementou com um Ensaio de Psicologia Portuguesa ((1971). Também em lembrança e homenagem da obra do ensaísta e do editor que tanto fez pela divulgação cultural entre nós, aqui deixo hoje à consideração do leitor as 20 Teses seguintes, como aparecem no cap. VI da 2ª edição (1973) da primeira das obras citadas. ]


1- Uma parte da Galiza e outra da Lusitânia formaram Portugal. (...)
2- Dois blocos regionais, secularmente emissores de população, e que não se misturam entre si, ainda hoje nos permitem, pela sua relativa natureza, ajuizar dos elementos humanos constitutivos de Portugal: - o Noroeste, cujos habitantes são identificados aos galaicos; e a zona montanhosa das Beiras, para os lusitanos.
3- Lusos e galaicos distinguem-se, posto que povos individualizados em finisterra, de parentesco próximo e afinidades incontestáveis.

4- O Português é uma síntese de lusitano e galaico, um luso-galego, e só metaforicamente lusitano.

5- O tipo do Português formou-se a partir da linha do Douro e Vouga – a charneira luso-galaica – ao longo da faixa de trânsito litoral, e daí por toda a Estremadura, Lisboa, Riba e Além-Tejo, com assimilação dos elementos exóticos.

6- A população portuguesa tende para a homogeneidade, pelo intenso convívio dentro de fronteiras oito vezes seculares, que a fácil articulação das comunicações ao corredor de trânsito litoral assegura, na estreiteza do seu território. (...)

7- A idealidade sonhadora, a contextura sentimental branda, mas rica em tonalidades e teimosia surda, o fundo instável da inquietação, a mundivisão saudosa, o pathos da alma portuguesa radicam-se no viveiro galaico, em sememlhança flagrante com a Galiza, propriamente dita; o espírito realista, de organização jurídica e independência pessoal, o talento político, a afirmação intrépida são principalmente lusitanos.

8- Os sentimentos dominantes do português tidos aparentemente, comummente por negativos e até por suicidas escondem carácter contraditório. Se fossem na essência assim depressivos, e patenteando-se eles há tantos séculos, a História de Portugal surgir-nos-ia absurda, por inexplicável e impossível.

9- A Saudade, fulcro da sensibilidade portuguesa, de modo algum é apenas retrospectiva; encerra um conteúdo insuspeitado de indeterminação e sentido futurante, pleno de impulso dinamogénico, por força do que insere de subconsciente, esperançoso apego à vida. A Saudade impregna toda a vida religiosa, sentimental e activa dos portugueses.

10- A forma de resistência nacional à adversidade é o Sebastianismo, inteiramente diversa da forma de resistência espanhola, o Senequismo.

11- A História de Portugal é uma história do Sentimento aproveitado, temperado pela Reflexão. Uma aventura consciente caracteriza-lhe os momentos mais densos, eficazes e significativos. Aventura consciente a independência, os descobrimentos, a formação do Brasil. A ruptura entre aqueles elementos, ora traz o domínio da Paixão, ora o da Razão correctiva. (...)

12- A História de Portugal, partindo da exiguidade geográfica, ao longo de um corredor marítimo, numa linha de força norte-sul, é uma história em trânsito contínuo, compensando-se com o Mar a escassez continental.

13- Com esse trânsito, de tendência oceânica, correspondente à sua idiossincrasia, o Português aprendeu a triunfar do meio geográfico, obteve as maiores vitórias sobre o espaço.

14- Os Descobrimentos e a Colonização constituem por isso a suprema afirmação dos Portugueses (...).

15- Na causalidade desse movimento trans-oceânico há que primeiro inscrever, entre outros estímulos, uma raiz antropológica , tão obscura como evidente, de interesse pelo mundo com apetência pelo desconhecido e pelo novo, a par do apego sentimental à pátria (...).

16- O Cristianismo teve na maneira de ser e actuação dos portugueses o mais decisivo esforço no sentido da destruição das barreiras raciais e das incompatibilidades culturais, com subsequente universalização do apostolado, e bem assim a institucionalização das mais belas formas do socorro humano.

17- Por sua vez, o curso histórico, além de individuar Portugal no quadro do mundo moderno, influiu na psique portuguesa num sentido activista, apurando-lhe as aptidões de adaptação e enriquecendo-a com experiência, com exotismo, calor e claridade. Com isso se distanciou da galega.

18- O fundo temperamental do Noroeste mantém-se, no entanto, como “limite” da sensibilidade portuguesa e da posição perante a vida.
A afirmação continua válida para os luso-descendentes.

19- A grandeza e intensidade do movimento histórico, a ambição e natural desgaste pelas desmedidas áreas e tarefas universais, retardaram a sistematização do conteúdo pensante português, já de si do tipo emocional e assistemático. Nos escritos poéticos e de viagens estão os expoentes do nosso génio.

20- No quadro hispânico a oposição psicológica, em muitos aspectos diametral, de portugueses e castelhanos, tem sido a prima razão e a salvaguarda instintiva da independência nacional.

segunda-feira, setembro 13, 2010

UM ENIGMA PORTUGUÊS

Permanece comigo um velho enigma que não me resolvo. – Como é que estes há nove séculos chamados “portugueses” nunca adentro de Portugal se entenderam bem com essa coisa chamada “política”, e a partir de 1128 sempre temos andado em lutas civis (mesmo que as mais das vezes contidas, sem se chegar à guerra aberta e generalizada), como já lembrei aqui. Perdurával enigma, já antes de haver “Portugal” notado e lapidado no célebre dictum dum estratego romano: - “Há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar”...

Houve já quem dissesse que tal se deveria a sermos uma mistura de muitos e muito diferentes povos, que se vão tolerando mas nunca inteiramente submetendo, resultando nas perpetuadas tensões de uma existência social e política de difícil integração a nível superior “nacional”. ( De aí deduziriam alguns a consequente perene necessidade de um Estado centralizador forte para manter a coordenação e coesão possíveis duma vida nacional. ) É uma hipótese que tem que se lhe diga, e acomoda-se bem com a matéria do postal anterior.

Esta finisterra atlântica tanto é ponto de partida como tem sido de chegada. Desde pelo menos o último pico glaciar (há cerca de 20 000 anos), que obrigou as gentes paleolíticas do centro e norte europeus a procurarem estas paragens mais amenas, são vagas sucessivas de povos: os que forçaram passagem até aqui; e os outros que, forçados, lhes fugiram diante até aqui. E, à beira do grande Mar, todos têm de parar e de, melhor ou pior, se acomodar: os mais fortes, ocupando e mandando; os que lhes fugiam, submetendo-se e servindo. Os sucessivos novos imigrantes, ou expansionistas vitoriosos, ou fugitivos, têm de chegar a um compromisso de coexistência com os que já cá estavam. Com o tempo, a como rítimica continuidade dessas vagas de invasores, a inevitabilidade de todos aqui pararem diante o paredão do Mar, talvez se terá aperfeiçoado uma arte de absorção, acomodamento e coexistência entre os muitos e diferentes povos, mas sempre instável e tensa. ( Só me lembra um caso, relativamente recente, de um povo que não se acomodou e saiu pelo mar diante invasores mais poderosos: os Vândalos, que foram para as montanhas do norte de África, dando origem aos “berberes”. Aliás, poucos séculos depois “vingaram-se”: a comandante parte dos “mouros” islamizados que, em 711, invadiram e ocuparam quase toda a Hispânia, eram berberes descendentes dos Vândalos, aliados a facções da nobreza goda rebeldes ao rei Rodrigo. ) Ora, as tensões e dificuldades da integração numa sociedade nacional única haveriam de reflectir-se necessariamente nas dificuldades da organização política. Contudo, há mais de oito séculos que não tínhamos imigração significativa: não foi tempo suficiente para resolver a questão, só disfarçada pelo centralismo reforçado do poder monárquico, até 1820 ? Parece que não, e o problema foi agudizado por um factor sobreveniente.

Surge, a propósito, e não sem interessante relação, outro problema: - Haverá algum povo aqui que, por sua antiguidade, pelo isolamento relativo, pela força ou habilidade de ter desviado de si os invasores, poderia supor-se e ser considerado “autóctone”? Há quem afirme que sim, e vá a ponto de lembrar os descendentes da Atlântida submersa... Mais recentemente, foi António Quadros a sugerir ter sido a Atlântida afinal esta península Hespéria, antecessora da Ibéria, a civilização megalítica dos construtores de menires, cromeleques, dólmenes e orcas, que maritimamente se teria expandido até à Irlanda e Grã-Bretanha, a norte, como até ao extremo Mediterrâneo (Creta, Egipto); e que teria mesmo sido a inventora da escrita... Com o andar dos séculos e a chegada de novas migrações, esse povo ter-se-ia como concentrado e perdurado sobretudo adentro daquele círculo de serras cujos diametrais polos são a Nave-Lapa, Lousã-Açor e Caramulo-Estrela, que englobam o que hoje chamamos “Beira Alta”, à qual, não por acaso, veio historicamente a referir-se o tipo humano e o mito cultural da “Lusitânia” fundadora.

Mas a marca fica sempre: muitos e diferentes povos, uns vencendo e dominando, outros vencidos e dominados. O que torna a situação relativamente especial neste ponto do mundo é a quantidade, as diferenças e a necessidade de coexistirem num território tão apertado; e talvez a formação de um núcleo existencial suficientemente coeso de absorção e equilíbrio, que sutilmente pervade e predomina, impedindo as tensões de degenerarem em conflitos de extermínio genocida ou de irremediável divórcio regionalista. Como disse, estará esse núcleo de coesão existencial, social e política originariamente na Beira Alta “lusitana”; e talvez que devamos a esse centramento demasiado a sul (relativamente) e à projeccção da Reconquista além-Tejo a definitiva perda medieval daquela parte mais nortenha do nosso Minho, a que já os romanos reconheciam uma unidade específica quando a nomearam “Calécia”. E já no tempo dos romanos é notável nas notícias históricas que nos deixaram, a extraordinária dificuldade de os vários povos da Lusitânia se concertarem duradouramente numa estratégia de resistência e repulsão dos romanos; o que não deixa de me lembrar o isolamento e perpétuas dissenções em que viveram sempre as cidades-estado gregas, incapazes de impedir o expansionismo macedónio. Só o excepcional aparecimento de um caudilho e estratego excepcional – Viriato – pôde efemeramente unir contra o Império as autarcias castrejas que viviam tão sobre si e tão ciosas da sua independência. (E não será por acaso que, séculos depois, é exactamente a sul do Douro que veremos proliferarem os medievais “concelhos”, reconstituindo e como repondo essas milenares autarcias que, já antes, melhor teriam resistido à feudalização senhorial imposta por Suevos e Visigodos.)

Portanto: a difícil coexistência de muitos e diferentes povos, cujas particularidades perduraram na extrordinária riqueza e variedade etnográfica que ainda por meados do século XX podíamos admirar na pequena área territorial do nosso país.

Como vamos vendo, estas imigrações continuam nos nossos dias, felizmente agora menos violentas. Aqui, a oeste, nada de novo. E, se é verdade que há e perdura actuante esse fundo multimilenar de coesão e equilíbrio, não é por aí que nos virá maior mal. Um fundo étnico de coesão e afirmação autonómica que pode eventualmente manifestar-se em pessoas individuais (e antes de Viriato não esqueçamos, nesses quase cem anos de resistência ao Império, os nomes de outros chefes: Púnio, Cauceno, Causaro...) que são como símbolos vivos duma norma colectiva fundamental, mais do que (im)propriamente indivíduos “excepcionais”. (Aquelas “personalidades de excepção” tão apreciadas pelos autoritarismos e sebastianismos políticos.) São tipos individuais típicos dum perfil comum de fundo, - e é por isso mesmo que podem tornar-se tão “populares”, sendo a sua acção tão profundamente (con)sentida e colectivamente memorável.

Contudo, o nosso problema permanece. E, como disse, dificultado por um factor sobreveniente: - a predicação do Cristianismo. Julgo que este povo português, feito das relações tensas entre tantos povos, se confirmou então no que já antes uma longa experiência anterior lhe ensinara: - nenhuma solução política viável que valha a pena, enquanto os homens forem o que são. (Se fossem perfeitos, nenhum problema político haveria). Portanto, tomou as suas distâncias e concentra-se na sua casa familiar, parentes e amigos. (Uma concentração sábia, se é verdade que o mundo político é a natural expansão dos problemas das relações intra e inter-familiares.) E não é já sem relutância que participa nas questões da freguesia ou do concelho. Quanto às questões “nacionais”, deixa essa tentação para “os políticos”, de vistas largas, grandes ideais e discursos de gente instruída e sofisticada: “eles é que estudaram, eles é que sabem”...
Sinto que, para os nossso portugueses, a solução política seria a mais radicalmente simples: - Que viva cada um como lhe apraz, e deixe os outros em paz! Solução impossível... Portanto, se não pode ser, veja cada um o que pode fazer na sua própria casa, e comece por aí...

Um problema que permanece ainda complicado por outros dois, inseparavelmente conexos, que também nunca resolvemos bem entre nós: o da economia (cá na nossa terra gostamos mais de gozar que de trabalhar...) e o da justiça ( o inextricável problema de “quem é a culpa”, e detestamos castigar, e sabemos que é inevitável)… A propósito da última, sempre achei notavelmente impressiva e significativa a quantidade de provérbios portugueses desconfiados e reprovadores das justiças humanas. E veja-se este delicioso trecho da célebre Carta de Bruges (circa 1425) enviada pelo infante D. Pedro a seu irmão mais velho e já de facto regente, D. Duarte: « A justiça, senhor, que é outra virtude, me parece que não reina nos corações daqueles que têm cargo de julgarem em vossa terra (...). Parece-me, senhor, que a justiça tem duas partes: uma é dar a cada um o que é seu, e a outra dar-lho sem delonga. E ainda que eu cuido que ambas em vossa terra falecem, da última estou bem certo; e esta faz tão grande dano em vossa terra, que em muitos casos aqueles que tarde vencem ficam vencidos; e eu vejo em vossa corte muitos oficiais de justiça, e de todos eles sairem mui poucos desembargos .... » Os que tarde vencem, quando vencem…

Permanências e premências de um problema, não excepcional, mas que nesta finisterra parece abismar-se num mar de dificuldades insuperáveis...


[ Não são apenas questões de ordem social e cultural que permanecem. Num livro recente - O Património Genético Português, 2009, de Luísa Pereira e Filipa Ribeiro-, as autoras informam-nos de alguns resultados da nova “Arqueogenética” aplicada à “história humana preservada nos genes” (é o subtítulo do livro): cerca de 80% das linhagens genéticas dos portugueses vêm-nos do... Paleolítico. Por sinal que há no livro (pp.81-82) cobertura para a tese duma expansão da nossa cultura megalítica para a Hibérnia e a Grã-Bretanha, em concordância com os dados já antes obtidos e divulgados (em 2006, mas não mencionados no livro) pelo geneticista de Oxford Bryan Sykes.
Sobre esta cultura megalítica e a sua relação com a mítica Atlântida, o leitor mais português que europês terá muito interesse em ver as pp. 91-155 do vol. I de Portugal: Razão e Mistério (1986), do citado António Quadros. ]

sexta-feira, setembro 10, 2010

POVOS ANTIGOS


« Quem não entenda, ou finja não entender, que as invasões de povos constituem um dado essencial das sociedades euro-asiáticas da Antiguidade, não compreende nada do que então se passou. »

Comecemos onde diz-se terá começado a História: as planícies do “crescente fértil” entre os rios Tigre e Eufrates, a região do actual Iraque; sim, as mesmas que têm sido um pantanal para as tropas regulares do exército mais poderoso que já pisou a Terra (ajudadas de 40 mil “contractors”, assoldados por empresas de segurança privadas), agora em processo de discreta e inglória retirada. Muitos outros por lá passaram e sumiram.

Há dois mil e trezentos anos antes de Cristo, mandava lá nessa zona da Mesoptâmia o império de Acad, herdeiro da Suméria, que se estendia do sul da Anatólia até ao actual Barém, no golfo Pérsico. A sudeste, para além do Sinai, o Egipto ia na VI dinastia do Império Antigo, já com cerca de dois mil anos de existência. Para leste, nas margens do Indo, florescia a civilização urbana de Harappa e de Mohenjo-Daro, com uma escrita de tipo hieroglífico, ainda hoje indecifrada. Estes estados centralizados em grandes cidades, propriamente civilizados, contrastavam com a multidão dos povos ainda nómadas, como os das estepes euro-asiáticas. Estavam neste caso os da região de Yamnaya, que se estendia desde os mares Negro e Cáspio até aos Urais. É o berço dos indo-europeus. Os primeiros que deixaram nome seriam os Umman Manda, os quais, descendo pelo Cáucaso, ocupam os planaltos arménio e anatólio; contidos pelo rei Sargão de Acad, divergem para o planalto iraniano e demandarão depois o vale do Indo. Terá sido esta uma das primeiras vagas invasoras dos indo-europeus, a que sucederão outras, séculos depois. Entre os Umman Manda contavam-se os que viriam a ser chamados Cimérios, Medos, Assírios (“Sírios brancos”, em grego), os Sindos (que deram nome ao Indo) e os Citas. Vinham de longe e foram para longe, porque foram os primeiros utilizadores do cavalo de montada: tão longe quanto… a Península Hispânica, cujo nome antigo – Ibéria – era na Antiguidade o nome duma região caucasiana onde fica hoje a Geórgia.

De facto estes povos indo-europeus deslocaram-se também para o Ocidente, e não terá sido a primeira vez. Deles nos ficaram vestígios, os mais antigos datáveis de cerca de 3 000 a. C: para além da célebre cerâmica de feitio campaniforme, os não menos famosos ídolos-placa representando uma divindade com olhos grandes de coruja, representação duma deusa-mãe que teria talvez sido cultuada por onde estamos nós hoje, com o nome de “Ammaia”: é o nome dum povoado que chegou à época romana, sito nos “montes ammaienses” – a serra de S. Mamede e uma região onde a vivaz festa das maias, tão preferida e protagonizada por jovens raparigas, só viria a fenecer no séc. XX d. C..

Uma referência inédita e curiosa (apoiada em referências de Estrabão, geógrafo grego do séc. I a. C. e Diodoro Sículo) é a presença de povos de cepa indo-ariana de língua Konkani (próxima do sânscrito) na nossa Península, pelo séc. XIII a. C., com origem no reino de Mitanni, na Alta Mesoptâmia. Expandiram-se para a região sírio-palestina, depois para o litoral norte-africano, donde alcançariam a Ibéria. Teriam sido empurrados pela grande migração que os egípcios registaram como a “invasão dos povos do Mar” (do mar Negro): os Sardos, os Calibes, os Bizeres, os Zela, os Hurritas, Mésios, Danaos (os homéricos Aqueus, sitiadores de Tróia) e os Teucros. Estes dois últimos fizeram deslocar os Estrímnios da Trácia para a Bitínia e mais para leste. É de lembrar que o famoso geógrafo romano Avieno (séc. IV d. C., mas apoiado em fontes gregas muito mais antigas) dará à região mais ocidental da Ibéria o nome Ofiussa, e dirá que era habitada pelos Estrímnios (à letra: povos do Ocidente). Ora, os tais povos de língua konkani serão os Concanes, de que nos falam Silo Itálico (séc. I d. C.) e Cláudio Ptolomeu (séc. II d. C.) como habitando o noroeste da Península Ibérica. Será o topónimo Concão (na freguesia de Poiares, Ponte de Lima) um paleolinguístico vestígio desse antiquíssimo etnónimo?... O Concão é o nome duma região da Índia, onde fica Goa e se fala o konkani. Muitos séculos mais tarde, « quando Afonso de Albuquerque, em 1510, escolheu Goa para capital portuguesa do Oriente não sabia que ia ocupar uma zona habitada por populações que tinham a mesma origem que alguns dos seus soldados e marinheiros.» Uma coincidência não tão notável assim, porque o mundo é redondo e andamos nele desinquietos há muito tempo: « os Concanes são apenas um dos inúmeros exemplos de fluxos e refluxos de povos na Euro-Ásia, movimentos que se mantiveram incessantemente por toda a Antiguidade e Idade Média.»

Se não for ainda mais antiga, a chegada dos primeiros povos indo-europeus à Estrímnia ou Hespéria, depois chamada Ibéria deu-se seguramente desde os finais do 3º milénio a. C. até ao final da Idade do Bronze (c. 1000 a. C.). É a civilização dos povoados fortificados em “castros”, dos quais os mais antigos (dos finais do 3º milénio) estariam na Estremadura portuguesa, com exemplos em Vila Nova de S. Pedro (Azambuja), Zambujal (Torres Vedras) e Leceia (Oeiras); dos vasos de cerâmica campaniforme, dos machados de talão, das estelas decoradas com motivos geométricos e (no sudoeste da Península) com motivos antropomórficos e uma escrita ainda hoje indecifrada.

Vieram uns por mar, integrados nas referidas invasões dos “povos do Mar”, vindos do Egeu, da península balcânica e do litoral da Anatólia. É o tempo da chegada dos Danaos-Aqueus a Tróia e do fim da civilização micénica. Entre estes povos contavam-se também os já mencionados Teucros (associáveis ao herói Teucro, da Ilíada), que fundaram Salamina, ocuparam Chipre e, viajando pelo Mediterrâneo, vieram a desembarcar perto de Cartagena, no sul da Hispânia, chegando posteriormente até à Galiza. O povoado chamado Hellenes, que ficava no noroeste peninsular, e a presença de Helleni e dos Grovii na nossa região de Braga, teria esssa origem. Como se vê, a mais moderna historiografia não desdenha olhar com mais compreensão a “mítica” e “fabulosa” lenda de um grego – Ulisses – ter chegado à região de Lisboa, que lhe teria herdado o nome (talvez mais provavelmente de origem céltica, Lixbona, como os das europeias Bona, Ratisbona, Narbona).

Outros vêm por terra : os Cónios, os Cefes e os Cinetes, estes dois últimos chamados “celtas” pelos autores clássicos. De facto, entre os que vieram pelo interior continental (pressionados pelos Germanos) e introduziram entre nós a metalurgia do ferro estão os povos celtas, vindos do sul da Alemanha, França e Suíça, que se deslocariam também para leste até à Trácia e à Galácia (na Ásia Menor) e para o noroeste atlântico (Irlanda e Grã-Bretanha). Encontram-se entre nós desde pelo menos o séc. VIII a. C., principalmente no Alentejo e noroeste peninsular, aqui talvez desde data mais recuada. Não esqueçamos os Fenícios, Cartagineses e Lígures tão encarecidos pelos historiadores, mas de que a arqueologia e a paleolinguística não encontraram vestígios relevantes na área do território hoje português. Temos, sim, notícia certa duma chusma de povos – Pemanos, Eburões, Turões, Volcos, Nérvios, Túngrios, Draganes, Rúgios,Vazeus, Lusões e Vetões – de origem étnica pouco clara: admitem alguns que fossem de origem germânica, daquelas tribos que, em meados do séc. VI a. C., atravessaram o Reno e obrigaram os celtas a deslocarem-se mais e mais para ocidente. Teriam corrido atrás deles até aqui? Teríamos então uma primeira vaga germânica, antecedente da dos Vândalos, Alanos, Suevos e Visigodos nos começos da Idade Média.

Não esqueçamos, evidentemente, os famosos Lusitanos, de origem celta, segundo querem uns, ou celtizados, segundo outros. Duas hipóteses inovadoras: seriam eles associáveis aos Tapori, que Plínio (séc. I d. C.) diz habitarem numa região da vertente ocidental da serra da Estrela ou na zona de Castelo Branco. Estes Tapori seriam da mesma origem que os Tapúrios, junto aos montes Elburz, a leste de Teerão; Ptolomeu (séc. II d. C.) dá-lhes origem nos montes Tapúrios, na Ásia central. Mas as nossas incrições (ainda por decifrar) de Cabeço das Fragas e de Lamas de Moledo, que têm sido associadas aos Lusitanos, não revelam uma língua com semelhanças ao sânscrito ou ao velho iraniano. A outra hipótese, talvez mais consistente, é a origem ilírica. Os Ilírios ocuparam no primeiro milénio a. C. a região da Trácia, áreas dos Balcãs, da actual Albânia e até no sul da Hungria. O ilírico é uma das línguas secularmente mais estáveis que os linguistas conhecem, e na nossa toponímia há uma série de nomes praticamente iguais a outros que ainda hoje existem nos Balcãs e na Albânia; mas também antropónimos e etnónimos, como os dos acima citados Gróvios, associáveis à cidade ilíria de Grofes. Se o nome de Viriato é claramente celta, os dos seus dois assassinos Ditalco e Audaca seriam de raíz ilírio-trácia. (Mas, no texto grego do historiador Apiano, aparece Audax, nome de sabor gaulês...) Recorde-se que os Estrímnios, de que se falou acima, seriam originários da Trácia. Do que não há dúvida nenhuma é que são dos povos celtas os mais numerosos e extensos vestígios, nas fontes escritas, na arqueologia, na toponímia e na hidronímia, com importantes contribuições quer do céltico continental, quer do insular. Para além dos Sefes e dos Cempsos, no sul actualmente português, os Bogontes, Brigantes, Equesos e Brácaros, a norte, seriam também celtas.

Tudo isto impõe pelo menos duas conclusões incontestáveis: « A nossa história não começa com D. Afonso Henriques. No séc. XII já tem milénios, e a Idade Média portuguesa nunca será poderá ser entendida se não for enquadrada numa longa tradição civilizacional para a qual os obscuros Indo-europeus do II milénio a. C. e vários outros povos pré-romanos deram uma contribuição fundamental. » E como corolário:
«Tal significa que podemos afastar completa e definitivamente a tese do “ermamento” seja em que período temporal for, desde pelo menos a Idade do Bronze, e seja em que parcela do território continental se localize. » É o que os trabalhos arqueológicos já feitos ou ainda em curso por causa da barragem do Alqueva têm mostrado para o Alentejo: quanto mais se recua no tempo, mais povoamento aparece.

[ A parte mais substanciosa e todas as citações deste postal são de duas inovadoras (e heterodoxas) obras de João Ferreira do Amaral – Os Filhos de Caim em Portugal. Povos e Migrações no II Milénio Antes de Cristo (2004) – e do mesmo com seu irmão Augusto Ferreira do Amaral, Povos Antigos em Portugal. Paleoetnologia do Território Hoje Português (1997). ]

terça-feira, setembro 07, 2010

JOSÉ RELVAS


Foi este o homem do directório do Partido Republicano que anunciou aos lisboetas, da varanda da Câmara Municipal, a 5 de Outubro, o triunfo do novo regime. Depois de ter passado, contra vontade sua, pelo ministério das Finanças do 1º goveno provisório da República, José Relvas foi nomeado embaixador em Madrid, onde esteve entre 1911 e 1913. Nessa missão delicada viria a conseguir, em Setembro de 1912, um acordo diplomático com o governo de Madrid, terminando este a cobertura mais ou menos discreta às incursões da reacção monárquica a partir da Galiza.
Retirando para a sua casa de Alpiarça, sem pertencer a nenhum dos partidos que, desde o Congresso Republicano de 1911, se digladiavam entre si pelo poder, voluntariamente afastado da política activa e de um protagonismo que nunca quis para si, as superiores qualidades políticas e pessoais que desinteressadamente revelara ao serviço do Estado não seriam esquecidas. Em Janeiro de 1919 ver-se-ia chamado à chefia do governo, de que tomou posse a 27, num momento da vida política que qualificou de “pavorosa confusão”. Os monárquicos haviam proclamado a 19 a restauração da Monarquia, no Porto, dominando o país até ao Vouga, durante cerca de um mês. Após enfrentar e dominar com êxito a crise, propôs-se José Relvas um “regresso ao 5 de Outubro”, tentando convencer os partidos à respectiva reorganização em bases programáticas claras e coerentes, e levar o presidente da República à dissolução do Parlamento. Certo dia de Fevereiro pensou tê-lo conseguido, e anotou isto no 2º volume das suas Memórias Políticas ( Lxa., 1ª ed. 1978), em carta a um “amigo” anónimo:
« No meu regresso de Belém tornou-se logo conhecida a resolução do Governo e a anuência do presidente. O Século mandava, à 1 hora da tarde afixar a notícia no placard do Rossio. Mas, a pedido de Cunha Leal e dos seus amigos, o placard foi retirado. Às 3 horas realizava-se o grande comício no Coliseu, ocultando-se ao povo o decreto da dissolução. O Cunha Leal – comediante-tragediante [sic] – sabendo que o Parlamento já não existia, resignou o seu mandato de deputado perante o comício. E acrescentou que, se o governo não decretasse a dissolução, convocava desde já o povo para dissolver o governo! E em verdade pouco faltou para que a ameaça se realizasse, pois no meio dos tumultos provocados com a polícia nas ruas do Ouro e dos Capelistas esse farsante subiu as escadas do Ministério do Interior, acompanhado de populares, que a breve trecho entravam violentamente no meu gabinete, armados com pistolas e espingardas, invectivando-me e não me tendo morto graças à oportuna intervenção de Tito de Morais, ministro da Marinha, secundado por outras pessoas revoltadas com a infâmia que estavam presnciando. Perante o recuo dos assassinos, Cunha Leal que os capitaneava, metido no vão de uma janela do meu gabinete, dizia: - “Não tem dúvida, daqui a meia hora”! Era com efeito insustentável a posição no ministério do Interior. Resolvemos refugiar-nos no Quartel do Carmo e, ao abrigo de um golpe de força, resolver como devíamos defrontar os acontecimentos. Entretanto nas ruas do Ouro e dos Capelistas, continuava o tiroteio com a polícia, obrigada a defender-se dentro já da esquadra do banco de Portugal. Havia mortos e feridos. O primeiro polícia fora morto à porta do Ministério.
Na arcada encontrei de novo o Cunha Leal e populares armados. A atitude de meu filho Carlos e das pessoas amigas que me acompanhavam evitou a segunda tentativa de assassinato. Já a bomba tinha feito o seu aparecimento, e foi sob um tiroteio nutrido e o estalar das bombas que atravessámos o Largo do Município e as ruas que percorremos até ao Carmo.
Como V. vê não se fez esperar a retribuição dos sacrifícios que estou fazendo pela República! »
Relvas teve sorte de escapar ao mesmo fim de que não escapou dois anos mais tarde primeiro ministro António Granjo, assassinado um mês depois da queda do seu governo, na “Noite Sangrenta” de 19 de Outubro de 1921, em que também foram assassinados Carlos da Maia e Machado Santos. Aguentou-se na chefia do governo até 30 de Março de 1919. Deste mês é outra das cartas que escreveu ao anónimo amigo sobre esta experiência, e em que se pode ler a abrir:
« Com os políticos dos partidos históricos da República temos a impressão de que não sabem bem o que querem, fora do estreito critério da posse do poder. Não se consegue que formulem um corpo de doutrina, que possa agremiar simpatias e esforços para uma obra de redenção. Entretanto o mesmo não sucede com os partidos avançados, em luta contra a própria República.
[ Transcreve aqui um trecho do jornal anarco-sindicalista A Batalha, e conclui assim esta carta. ] Os partidos vão abdicar perante o bolchevismo ou perante uma ditadira férrea. Suicidam-se estupidamente! »
Já de novo em Alpiarça, “restituído à paz da minha casa e da minha consciência”, escrevia em outra carta, com data de 5 de Abril:
«Voltaremos às mesmas lutas estéreis, ao mesmo desinteresse dos problemas nacionais, às mesmas intrigas ambiciosas, e ao cabo de um período mais ou menos longo outra ditadura virá renovar os dias de Pimenta de Castro [1915] e de Sidónio Pais [1917-18] (...). Uma ditadura que manterá apenas um simulacro de República, ou que será uma transição para a Monarquia. E essa será a maior responsabilidade dos partidos, que, a despeito de todas as experiências e de largas provações, são incorrigíveis nos seus processos e na na aceitação das mais comprometedoras solidariedades. »
Seguir-se-iam, por espaço de sete anos, até ao golpe militar que pôs termo à 1ª República, mais vinte e seis governos...

sexta-feira, setembro 03, 2010

UM ARGUMENTO ATEU...

... A favor da existência de Deus ? Eis o que me proponho neste apontamento de hoje, na sequência doutros anteriores sobre o “argumento do mal”.

Excluída a possibilidade de um Deus maligno sadeano, os argumentadores ateus evocam habitualmente a quantidade e atrocidade do sofrimento humano e animal provocado pelos desastres naturais e pelas perversões morais. Infelizmente, esta quantidade e qualidade podem ser ainda mais aumentadas do que eles pensam: por um lado, se não só humanos e animais fazem e sofrem o mal mas também agentes “sobrenaturais”, e não só no segmento temporal deste mundo mas também noutro, infernal, obstinadamente delongado sem limite temporal em face do Eterno; por outro, se não só os humanos e animais sofrem o mal – mas também o próprio Deus, que sofreu até à morte que os homens se podem dar e sofrer. (Tudo, evidentemente, sofrimentos que os ateus acreditam “fictícios”, mas que nem por isso deixam de acrescentar um real sofrimento aos que nisso acreditam.) Nestes casos, existitiriam mais e maiores males dos que o argumento assume. Ora, uns ou outros, todos eles não são de maneira nenhuma desconhecidos de uma tradição que na Bíblia hebraica lê os livros de Job, do Qohélet (o "Eclesiastes") ou de Ben Sirah (o "Eclesiástico"); e que na cristã lê as narrativas da Paixão e morte do Emanuel (“Deus connosco”), sem esquecer as perseguições e torturas dos cristãos martirizados. E esta consciência do mal – consciência vivida e sofrida na pele -, sempre se afirmou e pensou compatível com a crença na existência de um Deus sumamente bom, omnipotente e omnisciente. Portanto, parece que o “argumento” do mal o que mais seguramente demonstra é... a descrença do argumentador ateu.

O meu argumento parte das aparências duma situação cultural inédita em que estamos no mundo pós-1789, e que parece única na História do sapiens. É a situação existencial de que um Nietzsche deu clamoroso sinal com o “Deus morreu!”. (Morte sociológica; mas, como lembrei, a morte de Deus não deveria ser novidade nenhuma para um cristão.) Uma situação que o Ocidente, noutros séculos “missionário”, vai hoje difundindo em fase de “globalização”.

Não há, pois, no mundo natural, social, cultural e moral nenhum sinal “evidente” da presença de Deus algum, e a vivência social da Fé evanesce até desaparecer de todo. Tal é a primeira premissa do argumento.

A segunda, retoma em favor do ateu aquela célebre máxima dos Karamasov, do grande Dostoievski - “Se Deus não existe, então tudo é permitido” -, associando-lhe aqueloutra de Sartre: - e tudo é permitido porque “estamos condenados à liberdade”. Precisamente: somos livres e, porque não há nenhuma “essência” pré-fixada sobre o que é ser ou não ser humano, inteiramente livres para prolongar a existência humana na Terra, acabar com ela, ou transmutá-la numa “sobrehumanidade” nietzscheana ou outra.

A terceira premissa: se inteiramente livres num mundo inteiramente subordinado a leis da Natureza, então somos seres excepcionais no mundo.

Quarta: uma razão suficiente para a existência excepcional da liberdade no humano é este ter sido criado livre, à imagem e semelhança de um Criador livre e independente de leis da Natureza.

E sendo este Criador Deus, logo...

O argumento depende, entre outras coisas, da existência real da liberdade, algo que é um mero postulado da razão prática kantiana e não um facto do conhecimento, a priori ou a posteriori, da razão teórica; e eu próprio tenho defendido que, nas condições em que vimos, estamos e saímos deste mundo, é mais apropriado e verosímil falar em motivo ideal de libertação do que em liberdade, propriamente dita. No entanto, o ideal duma incondicionada transcensão do real condicionado, basta para timbre da excepcionalidade humana. E isto parec estar conforme com um sentido legível no factos da História humana: o de uma busca constante de auto-determinação relativamente aos constrangimentos naturais e sociais (a ponto de alguns pensarem que “Deus” seria um obstáculo a essa auto-determinação).

Quanto ao mais, o meu argumento ateu a favor de Deus deve ser tomado aqui pelos leitores do Tonel com sua ponta de sal cínico (ou céptico)... É que eu não creio haja ou possa haver neste assunto algum argumento conceptual demonstrativo, neste sentido: que fosse dedutivamente válido, epistemologicamente sólido e retoricamente convincente, de tal modo que um ser racional estivesse por qualquer modo obrigado a aceitá-lo. Ora, se assim fosse, ficava mais impedida a liberdade (o que não acontece, precisamente, com a , protectora dela). Portanto, o argumento apresentado acima não poderia ser nem pretender a tal...

O argumento quer somente significar duas coisas. Primeira, a importância decisiva da identidade humana: se é um animal como outro qualquer, ou se há neste animal alguma coisa de excepcional, único e irredutível à natureza biológica e mundana. Por outro lado, isto: se há um Deus livre que quer o homem livre, então seria de esperar um mundo possível em que a presença de Deus não fosse aparente. (O que não implica que, se fosse aparente e inegável, a liberdade não fosse possível: sempre era, como mostra claramente o relato bíblico do paraíso genesíaco.) Tal mundo possível é o mundo da nossa modernidade, em que a presença de Deus é cada vez menos aparente e cada vez mais negável e culturalmente negada.

Louvemo-nos de a modernidade ter contribuído para purgar e eliminar o que no mundo da nossa antiguidade eram simulacros caricaturais dessa Presença mistificada em idolátricas ideologias e costumeiras sociais institucionalizadas. Mas a clarificação tem um preço inescapável para a débil liberdade não regrada pela lei moral: - quanto mais nos cegarmos aos vestígios da presença de Deus no ambiente natural e social da vida humana, menos acesíveis teremos qualquer fundamento racional objectivo e moralmente imperativo para vermos sinais da dignidade e do respeito pelo nosso “próximo”; e muito mais apartados nos sentiremos todos dos outros animais e da inteira Natureza. O trágico século XX já foi um clamoroso e universal sinal disso...

... Assim a quantidade e a variedade dos males dão ocasião ao argumento do mal, e as triunfantes aparências deste multiplicam a quantidade e variedade dos males, reforçando o argumento do mal... O viciado círculo tem este desfecho fatal: o mau uso da liberdade esmagará a liberdade e a dignidade humanas.

Mas, se a liberdade humana é um inapagável sinal de Deus...