segunda-feira, julho 31, 2006

Seres humanos, morte, maquinações e passividade (a propósito do Líbano)

Estou-me nas tintas para quem tem razão! (Nenhum deles tem, claro!) Desprezo as causas nacionais, as razões de Estado, a necessidade estratégica da acção bélica, o prestígio dos exércitos e dos governos. Para lá destes e por causa destes, morrem pessoas, fustigam-se populações. Cansam-me também os comentadores e os textos jornalísticos que "relatam" e analisam esta guerra como se de um jogo de xadrez se tratasse.
Nesta torrente de discursos políticos, diplomáticos e jornalísticos assistimos ao esvaziamento da dimensão humana do indivíduo distante, neste caso, de cada árabe que morre, que fica ferido, que perde a casa. O olhar asséptico e conformado do Ocidente esforça-se por perspectivar o Outro como um ser-que-não-é-bem-humano (que é incivilizado, que não somos nós) enquanto forma de proteger-se (moral, humana e emocionalmente) de angústias maiores. É quase como se a fenomenologia husserliana se aplicasse à política, mas reformulada: o que não está presencialmente no nosso horizonte de percepção faz parte de outro plano da realidade. A representação, neste caso, não conta como recriação convincente e apelativa da realidade. (Tristemente curiosa é a forma como as tragédias em massa nos tocam: no extermínio dos Judeus, as mortandades e o sofrimento extremo só comoveram a humanidade quando passaram a ser história e quando se tornaram filmes de Hollywood.)
Que papel pode ter o cidadão individual face à guerra fabricada, e artificialmente alimentada, no Médio Oriente? A um prazo imediato, um papel quase nulo. (Se bem que seria possível trabalhar-se para prevenir a longo prazo guerras destas.) Os media têm mais poder. Mas não quando em tempos de tragédia humana se centram em questões como a bola ou os divórcios e as dietas das figuras merdiáticas. (Era apenas risível se não fosse desumano.) Gosto cada vez mais da linha editorial interventiva do jornal inglês The Independent. Sonho ver outros jornais adoptarem posições análogas em causas que agridam os direitos humanos.

domingo, julho 30, 2006

O espantoso poder da mente humana

Ainda a propósito da questão da interpretação da obra de arte e da procura de sentidos/significados, considerem este texto que me foi enviado, através de mail, por um amigo meu que, infelizmente, desconhecia a origem do texto.

I cdnuolt blveiee taht I cluod aulaclty uesdnatnrd waht I was rdanieg
The phaonmneal pweor of the hmuan mnid! Aoccdrnig to a rscheearch at Cmabrigde Uinervtisy, it deosn't mttaer inwaht oredr the ltteers in a wrod are, the olny iprmoatnt tihng is taht the frist and lsat ltteer be in the rghit pclae. The rset can be a taotl mses and you can sitll raed it wouthit a porbelm. Tihs is bcuseae the huamn mnid deos not raed ervey lteter by istlef, but the wrod as a wlohe. Amzanig huh? Yaeh, and I awlyas thought slpeling was ipmorantt.

quinta-feira, julho 27, 2006

O Líbano a ferro e fogo... ou, a história repete-se


Retomo a questão da guerra do Líbano com uma fotografia de uma colecção de imagens sugeridas pelo Miguel A e um poema de García Lorca sobre o sofrimento. A imagem reporta-se à Guerra de 1958. Neste site (Cedarland) encontram-se imagens das várias guerras que fustigaram o território libanês nos últimos cinquenta anos.


Casida del llanto

He cerrado mi balcón
por que no quiero oír el llanto
pero por detrás de los grises muros
no se oye otra cosa que el llanto.

Hay muy pocos ángeles que canten,
hay muy pocos perros que ladren,
mil violines caben en la palma de mi mano.

Pero el llanto es un perro inmenso,
el llanto es un ángel inmenso,
el llanto es un violín inmenso,
las lágrimas amordazan al viento,
no se oye otra cosa que el llanto.

García Lorca, El diván del Tamarit (1936)

quarta-feira, julho 26, 2006

Ich bin ein Libanese: contra a inevitabilidade dos danos colaterais


Dois pontos iniciais a esclarecer: sou absolutamente contra o terrorismo (feito por particulares ou por Estados) e sou absolutamente contra qualquer agressão a Israel (ou contra qualquer Estado) venha ela em que termos venha. No entanto, vejo como atroz e condenável a destruição do Líbano e a morte de centenas de libaneses que Israel está a empreender.

O Hezzbolah é um movimento criminoso e terrorista. Mas o Líbano não pode ser identificado com o Hezzbolah; e nem todos os libaneses são membros do movimento. Só um ingénuo acredita que os ataques israelitas, que arrasam o país e matam cidadãos a eito, são cirúrgicos e selectivos. Os chamados danos colaterais são imensamente superiores aos alvos abatidos. Deste modo, tanto são actos terroristas os mísseis disparados pelo Hezzbolah sobre Israel, como a ofensiva indiscriminada e em massa que o Estado israelita desencadeou em território libanês.

É inevitável recordarmos nesta ocasião aquele episódio do Antigo Testamento, livro Sagrado dos Judeus, em que Abraão pergunta a Deus se Este pouparia a cidade de Sodoma se dez justos aí encontrasse. Beirute não é Sodoma; os justos são muitos mais que dez e o direito à vida (noção que não está no Antigo Testamento nem na política externa israelita) pertence a todos os seres humanos. O que vale, pois, para Israel a vida de um libanês?

A destruição massiva do Líbano assenta no conceito de Realpolitik, isto é, a ideia de que a política tem de ser conduzida com base no pragmatismo e numa abordagem maquiavélica dos problemas (os fins justificam o uso de todos os meios). Os princípios éticos, os valores humanistas e os direitos humanos são liminarmente ignorados pela maioria dos Estados ocidentais (ditos Estados de direito) e pelos seus aliados sempre que outros “valores mais altos se alevantam”.

(Pintura de John Martin, Sodoma e Gomorra (1852?).

sábado, julho 22, 2006

Desafios à interpretação #2


Propõe-se aos leitores do Tonel que construam uma (ou mais) interpretação(ões) da escultura Maman (1999), de Louise Bourgeois (há mais fotos aqui). Sugere-se que se apresentem leituras globais desta peça (de dez metros de altura) que tenham em conta o simbolismo de alguns aspectos na sua fundamentação. As linhas de leitura que avanço são apenas algumas janelas que se podem abrir na análise da obra para se chegar a uma interpretação global. Cá vão:

1. Porque tem a figura um tamanho descomunal?
2. Porque são as “pernas” da aranha tão longas e finas (tendo em conta que a escultura é pesada e enorme)
3. O que nos lembra a disposição das pernas da aranha?
4. Porque é esta aranha negra? Como se relaciona esse facto com o título?
5. As aranhas tecem teias. O que poderia representar esse elemento aqui omitido?
6. Como se relaciona o título com a escultura? E que significado podemos atribuir ao facto de o título da peça ser Maman (e não Mother ou Mère)?

Não sei se é irritante ou se soa condescendente ter linhas de leitura que chamem a atenção para aspectos simbólicos da peça. Se for, digam-me.
Aproveito para agradecer os contributos muito entusiásticos de mais vários leitores na análise da escultura de Vespeira (Menino Imperativo) nos "Desafios à interpretação #1" (ver aqui e aqui).

sexta-feira, julho 21, 2006

Variações sobre um tema


Dei a conhecer a um grupo de amigos aquele poema do Pedro Mexia que reza assim:

"Adoro o teu atendedor de chamadas.
Ele não me abandona nunca
e repete
vezes sem conta
a tua voz."

A emoção foi geral. E cada um deles resolveu propor uma variação sobre o tema, uma paródia do poema. Reúno aqui algumas glosas da composição:


Adoro a tua caixa de e-mail
porque posso
deixar-te mensagens
sem ter de
ver a tua focinharra.


Adoro falar contigo
no Messenger
porque posso desligar-te
na cara
e fingir que a ligação caiu.


Adoro a tua caixa do correio:
o teu marido ainda apanha
a carta que te mandei
e depois vem cá partir-me a cara.


Adoro falar contigo no skype:
os gajos da PT não ganham um tusto
e posso dizer-te impropérios
sem ouvir som de retorno.


Adoro olhar a tua fotografia
porque não falas
e não me chateias.


Imagem: fotografia da escultura Love, de Robert Indiana.

terça-feira, julho 18, 2006

Desafio à interpretação: "Menino Imperativo"


O desafio de interpretar a escultura Menino Imperativo, de Vespeira, excedeu as nossas expectativas. Os resultados, que foram excelentes e muito thought-provoiking, podem ser lidos aqui e aqui. Convidam-se os leitores a continuar a propor interpretações para a peça ou a comentar as análises já avançadas. As leituras da escultura a que os leitores do blogue chegaram foram variadas. Um vêem o Menino Imperativo como uma representação de D. Sebastião ou de Portugal; outros não vêem um menino, mas uma menia, com ou sem menino lá dentro; alguns excitaram-se com a forma vaginal do búzio; outros deitaram-se a adivinhar que o búzio estava lá para o escultor não ter de criar uma cabeça. Mas, na verdade, todas as interpretações se revelaram interessantes e válidas! Foi excelente. Para a semana contamos lançar o segundo desafio à interpretação.

domingo, julho 16, 2006

Ainda o Menino Imperativo

Tinha pensado fazer isto em forma de comentário, mas, pensando melhor, achei que podia abrir aqui uma outra via de discussão tecendo estes comentários em novo post.
Nesta ordem de ideias, talvez fosse interessante uma análise daquilo que aparece. Em primeiro lugar, trata-se claramente dum corpo de formas femininas o que, de certa forma, contraria o título "menino". O autor pode ter querido, aqui, dar um passo antinómico ou paradoxal, conduzindo-nos num sentido visualmente e noutro através das palavras. É uma questão que tem de ficar em aberto.
Por outro lado, se repararmos para a forma arredondada da barriga talvez sejamos levados a pensar que existe, dentro dela, um feto (trata-se duma mera hipótese) que, sem dúvida, ajudaria a explicar o título: menino imperativo, porque imperiosamente há-de despontar e, paulatinamente, há-de demonstrar a sua imperatividade.
Em segundo lugar, a cabeça em forma de búzio num apelo evidente à potência marítima (passo a expressão porque, provavelmente ninguém sabe o que significa e eu também não). O mar é, sempre, na nossa cultura portuguesa um imperativo. Convém, ainda, notar a abertura apontando para a parte superior. Este facto dispensa qualquer comentário, ainda mais quando o associamos à posição, postadas no degrau imediatamente inferior ao búzio, e à simbologia das velas.
A posição “firme e hirta” a que o Alexandre chamou a atenção poderão simbolizar a determinação mas, também, a imperiosidade da figura.
De notar que a vestimenta do tronco, que parece um fato de ginasta, não combina com a dos membros inferiores criando a mesma duplicidade do corpo feminino e do título masculino.
PS – que me seja desculpado o desconforto de procurar a figura mais abaixo.

Zapatero tem-nos no sítio

Cada vez aprecio mais a orientação e a prática políticas do Primeiro Ministro espanhol. Foi firme e não se vergou servilmente perante o Papa quando este se deslocou a Espanha há poucos dias. (Isto apesar de Ratzinger ter "recebido" Rajoi de forma politicamente desonesta.) E, convenhamos, a questão do casamento civil entre homossexuais não pode ser tão complexa nem tão problemática como a do aborto; nem devia ser um cavalo de batalha prioritário para o Vaticano. É absurdo que assim seja.
Ontem, num discurso político, teve a coragem de condenar a assassina ofensiva militar de Israel, sem desculpar o indesculpável terrorismo árabe. E um gesto destes não cai bem entre os parceiros da comunidade internacional. Admiro esta atitude de Zapatero, que recusa a Realpolitik vigente na relação entre os Estados poderosos do Ocidente. Zapatero tem-nos no sítio. E o sítio onde os tem é este.

"O Navio de Espelhos", de Mário Cesariny




O Navio de Espelhos


O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ála
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo


Mário Cesariny


(Desenho de Chris Becker intitulado Traveller)

'Ulisses', de Lima de Freitas

quinta-feira, julho 13, 2006

É de iniciativas destas que o país anseia

Foi ontem tema de notícia o jantar de Pinto da Costa com os deputados que gostam do FCP. Entretanto, decidiu-se, em plenário no hemiciclo, que a próxima iniciativa, que pretende ser registada no Guiness, será um repasto de representantes nacionais que gostam de pastéis de bacalhau. Uma nova diligência, promovida pelo Partido Ecologista Os Verdes, pretende reunir os mandatários dos eleitores que amam degustar peixinhos da horta e xerovias.
O engenheiro Sócrates já veio, com o seu afã habitual, atestar que estas iniciativas são mais um indicador de que estamos no caminho certo.

Epifania africana

Tenho entre mãos a tradução de um pequeno documento jurídico para inglês. Pedi a um amigo nigeriano, falante nativo de inglês e tradutor, que me desse uma ajuda no vocabulário jurídico. Ele dispôs-se logo a encontrar-se comigo esta tarde. Percebi que o meu amigo estava com bastante trabalho e, por isso, enchi-me de salamaleques e de cerimónias: "vê lá se te dá jeito... olha que estás cheio de trabalho...". O meu amigo deu resposta aos meus salamaleques neste termos:
Em África, dizemos que a nossa vida pertence aos nossos amigos.

Desafios à interpretação #1



Tenho uma proposta para os leitores deste blogue que resulta de uma conversa que em tempos tive com dois amigos (um dos quais tem comentado regularmente os posts do Tonel). Aqui há um par de anos não concordávamos na interpretação que fazíamos da peça que se encontra epígrafe, intitulada Menino Imperativo (1951, FCG), composta pelo surrealista português Marcelino Vespeira. Lembro-me que, na altura, me agradou muito ouvir leituras da peça quase oposta à minha. Foram uns minutos estimulantes de conversa.

Assim, porque os escribas deste blogue e os seus leitores acreditam que a Arte se produz para provocar reacções e interpretações diferentes, deixo um desafio. Convidam-se os leitores do Tonel a avançarem significados para o Menino Imperativo. Deixo algumas linhas de leitura problemáticas (entre outras a explorar) que necessitam de esclarecimento:

.O que significa o título?
.Como se relaciona o título com a peça?
.Porque está o “Menino” aparentemente fardado?
.Como explicar a posição "firme e hirta" da figura?
.Como interpretar o facto de a sua cabeça ser um búzio?
.O que podem representar as velas acesas sobre as dragonas?
.Como interpretar a cera das velas derretida sobre o tronco da figura?

Claro que uma interpretação não tem de responder a todas estas questões: encorajam-se também as achegas, os comentários e as explicações parciais. Apresentarei daqui a uns dias a minha leitura, que será apenas mais uma.
Para os iconoclastas, deixa-se a pergunta: mas isto é arte?

quarta-feira, julho 12, 2006

Novo colaborador do Tonel de Diógenes

O Tonel de Diógenes tem um novo colaborador. Trata-se de Marcos Farias Ferreira: docente de Relações Internacionais, cinéfilo ferrenho, globetrotter, excelente conversador, altruísta militante, amante do distante e cultivador das boas estórias. Podemos esperar que os seus contributos estejam marcados pela sua mente aberta e esclarecida e pela capacidade que lhe conheço de ligar ideias, experiências e paixões de várias áreas e domínios.
Seja bem vindo ao Tonel!

Mariotte Júnior

Tendo recebido um e-mail da parte de Mariotte Jr., na caixa de correio da Barrica, vou, embora sem autorização prévia, postá-lo neste blog para que não afirmem, acintosamente, que nós não damos voz aos nossos contraditores. Caso o caríssimo filho espiritual do Padre Amadeu de Vasconcelos tenha alguma objecção séria a esta publicação comprometo-me, apenas com a demora indispensável, a apagar esta exposição e os comentários que, entretanto, forem produzidos acerca dela.
Depois deste esclarecimento prévio vamos, então, às palavras de Mariotte Jr. que aparecerão devidamente aspadas.
“Tem você publicado uma dose dupla de comentários sobre filosofia e direita e, que eu saiba se exceptuarmos as palavras de Lamúrias Jr., ainda lhe não foi dada uma resposta cabal. Por esse motivo vou, embora de forma particular, procurar responder às questões que levanta nos seus artigos.
A sua tese principal é que a direita não tem base ideológica, filosófica chama-lhe você. Ora bem, você mesmo enumera no primeiro artigo um conjunto de denominados “contra-revolucionários” que “botaram obra”. A Nação Portuguesa que também já foi aludida tem um conjunto de artigos de António Sardinha intitulados “Os Mestres da Contra-revolução”, continuados depois, embora com menos brilho, por Fernando de Campos (se não me falha a memória). Nestes aparecem bem claros os princípios ideológicos que, duma maneira ou de outra, vão encorpar a filosofia da direita.
Em segundo lugar desenvolveu uma nova tese em que asseverava que a tradição enformava toda a base ideológica, ou como você quer filosófica, da direita. E que mal tem isso? Não fez a escola histórica do direito uma doutrina baseada nos usos e costumes dos povos e nações. Não teve esta escola ampla repercussão ao nível histórico, filosófico, sociológico, etc.
Penso que, desta forma, respondo às suas objecções maiores à falha de ideias (digo ideias porque penso que é isso que se trata) que apoquenta a direita segundo a sua perspectiva.”

Nótula mínima #1

Madaíl queria que os prémios de jogo dos milionários futebolístas da selecção ficassem isentos imposto. Vá lá, parece que isso não vai acontecer. Mas a ideia de excepção na sociedade lusa explica muitos dos seus males: cada português acha que se deve aplicar para si o regime de excepção quando ele tem de ser cumpridor ou respeitar as suas obrigações. Somos péssimos cidadãos! E um país com dez milhões de péssimos cidadãos só pode dar na bandalheira que somos.

segunda-feira, julho 10, 2006

Biblioteca livre ou Biblioteca livros?

Quem depois de deixar para trás a Alameda da Universidade em direcção a Entrecampos aborda a Biblioteca Nacional depara-se com um letreiro onde aparece a seguinte inscrição: Biblioteca Nacional – Livre.
Qualquer mortal ficaria tomado de espanto porque aquilo que se aguardaria seria Biblioteca Nacional – Livros. Mas, aquilo que é uma realidade é que desde o ano de 2005 essa instituição passou a ter um parque de estacionamento que não se destina, como era de regra, aos funcionários e leitores, mas, num impulso economicista, a todos aqueles que, tendo cabedal, fazem dele o pousio das suas viaturas.
A primeira pergunta que nos ocorre é se uma instituição pública pode tomar este tipo de atitude? Já estou a ver os hospitais e estabelecimentos de ensino público a fazerem exactamente o mesmo com o fito de cativarem receitas e, então, como será? E quando os tribunais e outras entidades públicas forem na mesma senda? Nesse caso alguém irá fazer alguma coisa?
Não queríamos terminar este desabafo sem notificar que os preços do estacionamento na Biblioteca Nacional são mais elevados que os praticados nos parquímetros da Câmara.

domingo, julho 09, 2006

Apologia do emprego precário


O caderno "Emprego" da edição do Expresso de ontem apresenta uma reflexão sobre a realidade do trabalho temporário em Portugal. Se não fosse ofensivo para quem é explorado neste regime laboral, seria hilariante. Assistimos a jornalistas e a directores de empresas de recursos humanos a defender o trabalho temporário, dizendo que não se trata de emprego precário e que muitos trabalhadores optam voluntariamente por ele. Tendo em conta que este regime laboral é muito mal pago, que não garante futuro nem segurança de emprego a ninguém e que nele se ignoram ou depreciam as habilitações dos trabalhadores (há licenciados a trabalhar em call-centres e como caixas de supermercado... e não são pagos pelas qualificações que têm), o elogio do trabalho temporário é de uma imbecilidade asquerosa, uma tentativa estúpida (porque sem arte) de nos mandar areia para os olhos. Porque não vão os apologistas do emprego a curto prazo e sem direitos trabalhar por conta de outrem nessas condições? Porque não dizem aos seus filhos para o fazer?
(Pintura: Sísifo, de Franz von Stuck)

O credo de um Samurai


Transcrevo aqui o credo de um samurai (no sentido de declaração de princípios e de linhas orientadoras). Infelizmente, o nome do samurai não chegou até nós. Sabemos que o texto é do século XIV. Vi inicialmente este texto aqui.

Creed of a Samurai

I have no parents - I make the heavens and earth my parents.
I have no home - I make awareness my home.
I have no life or death - I make the tides of breathing my life and death.
I have no divine power - I make honesty my divine power.
I have no means - I make understanding my means.
I have no magic secrets - I make character my magic secret.
I have no body - I make endurance my body.
I have no eyes - I make the flash of lightning my eyes.
I have no ears - I make sensibility my ears.
I have no limbs - I make promptness my limbs.
I have no strategy - I make “unshadowed by thought” my strategy.
I have no designs - I make “seizing the opportunity by the forelock” my design.
I have no miracles - I make right action my miracles.
I have no principles - I make adaptability to all circumstances my principles.
I have no tactics - I make emptiness and fullness my tactics.
I have no talents - I make ready wit my talent.
I have no friends - I make my mind my friend.
I have no enemy - I make carelessness my enemy.
I have no armor - I make benevolence and righteousness my armor.
I have no castle - I make immovable mind my castle.
I have no sword - I make absence of self my sword.

(Fotografia de um samurai na sua armadura, de Felice Beato, tirada na década de 1860.)

sábado, julho 08, 2006

24 horas de ideologia americana



Iniciou-se esta semana mais uma edição da série 24, onde se relatam 24 horas de ameaça terrorista, passadas em grande tensão por uma Unidade de Contra-Terrorismo (UCT) dos serviços secretos americanos. A técnica narrativa seguida tem a sua graça: cada conjunto de 24 episódios de aproximadamente uma hora segue os acontecimentos vividos pelo grupo da UCT. Tal significa que o tempo da narrativa aparentemente representa “quase fielmente” (sem saltos ou elipses) o suposto tempo cronológico da acção.

O que me interessa, no entanto, nesta minha brevíssima análise é outra coisa. A situação narrativa, como disse, centra-se numa ameaça terrorista em solo americano, e o esforço sobre-humano de todos os patriotas (agentes do UCT, políticos, etc.) vai no sentido de eliminar o inimigo interno. Assistimos, assim, à ideologia americana a funcionar e a ser difundida da forma mais eficaz. A ameaça que assola a população dos EUA é do tipo das que a aterroriza após o 11 de Setembro: ameaça nuclear, ameaça epidemiológica ou outra nesta linha. Os inimigos são os suspeitos do costume: preferencialmente, os árabes; mas também a máfia russa, os cartéis de droga sul-americanos, etc.

Ainda assim, o mais interessante da série é, a meu ver, a legitimação do vale tudo, do atropelamento dos direitos do cidadão na realidade securitária americana pós-9/11. O protagonista, Jack Bauer, a quem o espectador se cola empaticamente, mata quem tem de matar (americanos, se necessário), tortura quem tem de torturar, para eliminar o perigo terrorista. E a nação fundadora da democracia moderna aceita a suspensão dos direitos e das liberdades individuais, justificada pela noção de necessidade nacional. O que a série acaba por representar é a América como uma espécie de Leviatã pós-moderno.

Depois há um conjunto de outros elementos que veiculam a ideologia americana: a imagem de honradez e de patriotismo do Presidente e dos que o rodeiam; a América a funcionar eficazmente com um todo bem oleado, uma espécie de formigueiro de cidadãos empenhados e mobilizados em torno de uma causa; a visão estereotipada e condescendente do outro (quem não é americano é um ser humano de calibre inferior); o maniqueísmo na avaliação de pessoas, causas e nações (“ou estão connosco ou estão contra nós”); a legitimação do uso da violência, enquanto mal necessário; etc., etc. Muito mais havia para dizer.

sexta-feira, julho 07, 2006

As duas almas do Socialismo



Encontrei na net este interessante resumo da história do Socialismo (ver aqui). O estilo é leve; as caricaturas que acompanham o texto têm a sua piada.

Precursores de Proudhon


Envia-me o Miguel um poema inglês sobre conflito de classes. (Diz-me ele que se trata de um poema medieval; num outro site é dito que é do séc. XVII; é, de qualquer forma, anterior ao séc. XIX.) O poema é certamente um digno precurssor das ideias de propriedade de Proudhon. Aqui vai:

The law locks up the man or woman
Who steals the goose from off the common
But leaves the greater villain loose
Who steals the common from off the goose.
The law demands that we atone
When we take things we do not own
But leaves the lords and ladies fine
Who take things that are yours and mine.

The poor and wretched don't escape
If they conspire the law to break;
This must be so but they endure
Those who conspire to make the law.
The law locks up the man or woman
Who steals the goose from off the common
And geese will still a common lack
Till they go and steal it back.

quarta-feira, julho 05, 2006

O moscardo em voo sinfónico



Encontrei na net esta pintura abstracta, que não é "arte culta" ("high art"), nem coisa elevada desse tipo. A pintura intitula-se Bumble Bee Music (Música de moscardo) e foi concebida por Loren Adams. Não sei se se trata deliberadamente de uma representação plástica da famosa composição musical "O voo do moscardo", de Rimsky-Korsakov. Mas aplicava-se bem. As linhas e as cores simulando o movimento, a harmonia dentro do caos representando o som (a música) produzida pelo insecto, a fixação do espaço criado pelo voo irregularmente elíptico do moscardo são algumas achegas para a leitura da imagem. Trata-se de uma espécie de abstraccionismo cinético, diria eu. Não sendo "arte culta", tem a sua graça.

Teratologia

Serve a presente para publicitar uma obra que foi recentemente reeditada. Intitula-se Monstros é de autoria de José Gil e foi publicada pela Relógio d’Água (Maio de 2006). A edição portuguesa original é de 1994 da Quetzal.
Da introdução retiramos as seguintes passagens:
“Neste fim de século, os monstros proliferam: vemo-los por todos os lados, no cinema, na banda desenhada, em gadgets e brinquedos, livros e exposições de pintura, no teatro e na dança. Invadem o planeta, tornando-se familiares.
Cessarão, muito em breve, de nos parecer monstruosos e ser-nos-ão até simpáticos, como já acontece a tantos extraterrestres das séries de televisão. Havemos de falar então da ‘monstruosidade banal’, como se fala agora da ‘violência banal’ – o que constitui, precisamente, uma aberração”.
E mais à frente:
“Já não nos contentamos com as classificações bem ordenadas de um Geoffroy Saint-Hilaire que pacificavam finalmente um universo confuso, racionalmente escandaloso, incapaz, desde há séculos, de estabelecer ‘as leis da aberração’”.
E mais não digo.

Adiar ou não adiar em An-adia

Sendo a primeira vez que me desloquei à Vila de Anadia deparei no centro da localidade com dois bustos de figuras ilustres da nossa história contemporânea. Convizinho ao edifício da Câmara Municipal encontramos a figura de José Luciano de Castro e nas suas imediações a estátua em honra do Visconde de Seabra. Informações acerca dos dois tínhamos as datas de nascimento e morte e do segundo o facto de ser o fautor do Código Civil.
Quanto ao segundo, havia a segurança de ele ter nascido no Porto e morrido em Lisboa, o primeiro que havia morrido na capital era dado certo. Pela informação que era disponibilizada ficava-se com a ideia de que António Luís de Seabra tinha redigido o articulado nesta vila da Bairrada.
Porém, não satisfeito com o que tinha à disposição nas esculturas dirigi-me à Câmara e pedi para falar com alguém da divisão de Cultura. O segurança, de forma solícita, informou-me que apenas o vereador do pelouro estava disponível e solicitei chegar à fala com ele.
É verdade que ao primeiro impacto concordou com a minha sugestão, mas, ao fim dum pouco, já parecia tergiversar.
Por essa razão só me apetece afirmar: para quando as placas informativas, senhor vereador?

terça-feira, julho 04, 2006

O mundo anda mesmo às avessas



Esparsa ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, pera mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau; mas fui castigado.
Assim que só pera mim
anda o mundo concertado.

Camões

"How pleasant to know Mr. Lear", de Edward Lear, ou Quando os bifes tinham piada



How pleasant to know Mr. Lear,
Who has written such volumes of stuff.
Some think him ill-tempered and queer,
But a few find him pleasant enough.

His mind is concrete and fastidious,
His nose is remarkably big;
His visage is more or less hideous,
His beard it resembles a wig.

He has ears, and two eyes, and ten fingers,
(Leastways if you reckon two thumbs);
He used to be one of the singers,
But now he is one of the dumbs.

He sits in a beautiful parlour,
With hundreds of books on the wall;
He drinks a great deal of marsala,
But never gets tipsy at all.

He has many friends, laymen and clerical,
Old Foss is the name of his cat;
His body is perfectly spherical,
He weareth a runcible hat.

When he walks in waterproof white,
The children run after him so!
Calling out, "He's gone out in his night-
Gown, that crazy old Englishman, oh!"

He weeps by the side of the ocean,
He weeps on the top of the hill;
He purchases pancakes and lotion,
And chocolate shrimps from the mill.

He reads, but he does not speak, Spanish,
He cannot abide ginger beer;
Ere the days of his pilgrimage vanish,
How pleasant to know Mr. Lear!

Edward Lear

segunda-feira, julho 03, 2006

Questão de perspectiva


Numa altura em que o futebol traz à superfície o patriotismo bacoco e míope (achamo-nos uma nação superior porque estamos nas meias-finais do mundial), é bom espreitar para o lado e ver como outros nos olham. A "imprensa de sarjeta" inglesa ainda hoje, dois dias depois do jogo, fala do comportamento desprezível de C. Ronaldo (sobretudo porque sugeriu ao árbitro a expulsão de Rooney) e procura empolar entre os seus leitores o ódio ao jogador português, que "trabalha" em Inglaterra. Critica-se Ronaldo ainda por não ter "pedido desculpa" a Inglaterra. Rooney é totalmente desculpado. (Ver o jogo de dardos que tem como alvo a cara de C.R. aqui; ver mais informação aqui.)
É este tipo de embrutecimento, de preconceito, de alarvidade que a máquina do futebol e que os agentes que em torno de si gravitam promovem. E os ingleses que se acham o povo mais civilizados do mundo...!

Qualidade e ética académicas

Estive no final da semana passada num congresso en un lugar de Portugal cuyo nombre no quiero acordarme. Ia com muita expectativa para o encontro porque o tema me interessa muitíssimo. Regresso desiludido. Algumas das comunicações a que assisti (não muitas!) revelaram-se interesantes - como havia quatro ou cinco sessões paralelas, não posso fazer uma avaliação global do congresso. Mas o que queria aqui dennciar é outra coisa. Assisti a três conferências plenárias e a duas comunicações em sessões paralelas em que os oradores gastaram mais de 80% do seu tempo a apresentar dados estatísticos ou informação institucional (ou seja, dados colhidos por outros). O resto era um conjunto de conclusões superficiais. Não se apresentava uma tese; não se sustentava um argumento. E, repito, três dessas conferências eram plenárias(!).