segunda-feira, novembro 01, 2010

UMA PARÁBOLA

Já passaram três anos de colaboração regular minha neste Tonel. Disse o suficiente de quanto tinha para dizer aqui. O recado está dado, o testemunho passado.

Uma só coisa mais é devida, e não de somenos: agradecer o muito generoso convite e a magnimidade tolerante do administrador Alexandre Dias Pinto. Muito me praz associar o seu nome ao nome do autor e do título do livro com que me despeço : A Luta Contra a Barbárie.

O autor é George Steiner, e o livro (Lxa., 2004) reproduz uma série de diálogos que ele manteve com Antoine Spire. No capítulo “Um Nada da Sombra de um Certo Tédio...” conta uma história que nos assevera verídica. Nada tenho a acrescentar ao ponto moral tirado do conto pelo insigne humanista que é Steiner. Direi somente que o professor de literatura não resistiu a dar nota à tradução que cita; quanto a mim, mesmo que ela fosse literariamente péssima, seria sempre excelente, quanto ao que mais importa.

Refere-se o início do conto ao sombrio regime totalitário soviético e a dois dos seus dirigentes. Esse regime ficou pretérito e preterido no tempo. O contrapolo dialéctico dele, vencedor na década de 90 do século passado, agora sem adversário directo nem freio político nenhum, tem vindo a estender o nada da sombra de um certo tédio pelo mundo. Mas o caso chinês é a concludente demonstração histórica de que não há incompatibilidade radical entre o imperialismo vencido e o tecnocapitalismo já agora globalizado. Ainda que este se revista, propague e manipule ficções de “liberalismo” e “democracia”, conclui no mesmo : a canceração totalitária da pessoa humana num cárcere de despersonalização e desumanização.

A história de Steiner mantém, pois, toda a sua pertinência e actualidade. Como verá quem suportar viver e ver sem se fechar os olhos. Mas ela sugere bem de que ordem superior é que são os precisos e já experimentados meios que a alternativa única é capaz de levar vencedora. Mesmo que a alegria custe os olhos da cara.

Seja a última palavra com que Steiner termina a minha enfática e terminal encomendação aos eventuais leitores deste postal – principalmente os mais jovens, aos quais já estão e irão ser pedidos os maiores sacrifícios. – Não tenham medo! Não desistam de se preparar bem e bem procurar, com determinado e desinteressado amor : o que mais custa é o que mais vale, e melhor sabe.

Eis o conto:

« Nos tempos de Brejnev – já não era o pior, era ainda gravíssimo, mas já não era o regime de Estaline -, havia uma jovem mulher russa numa universidade, especialista em literatura romântica inglesa. Essa mulher jovem foi metida numa cela, sem luz, sem papel nem lápis, na sequência duma denúncia idiota e completamente falsa. Ela sabia de cor o Don Juan, de Byron (trinta mil versos ou mais). Na escuridão da cela, pôs-se a traduzi-lo mentalmente em rimas russas. Quando saiu da prisão, havia perdido a vista. Ditou a tradução que memorizara a uma amiga: é hoje a melhor tradução russa de Byron.

Perante isto, digo de mim para mim várias coisas; e, para começar, que o espírito humano é indestrutível, totalmente.

Em segundo lugar, que a poesia pode salvar o homem. Até mesmo no impossível.

Em terceiro lugar, que uma tradução, apesar da sua imperfeição humana, traduz aquilo que traduz: o que é uma outra maneira de dizer que a linguagem e a realidade mantêm uma relação que as liga.

E, em quarto lugar, digo-me que devemos sentir uma grande alegria

quinta-feira, outubro 28, 2010

VIDAS DE CÃO



Já vimos aqui no Tonel um Cão anónimo dar uma lição a Licínio, não só sobre cabelos e barbas, também sobre as vantagens de viver apartado da vida urbana e só vestido “duma veste de que os deuses se honram”, querendo dizer: nu, como a madre Natureza o deu ao mundo. Quem no-lo contava era o retor romano Luciano de Samossata, que também conheceu outros dois renomados “cínicos” – Demonax e Peregrino. Ambos estes teriam sido iniciados na vida canina por um filósofo que demorava no Egipto, chamado Agatóbolo. Antes disso, como também já lembrei, Peregrino teria vivido associado com os cristãos, na Palestina. O erudito advogado romano Aulo Gélio conta que se avistou com Peregrino nas cercanias de Atenas, onde o filósofo vivia pobremente numa choupana. Estávamos nos finais do século II depois de Cristo.

Como se sabe, o imperador Juliano, uns cinquenta anos depois do seu antecessor Constantino se ter ligado ao Cristianismo, tentou na última metade do séc. IV repor em plena e pública forma as homenagens imperiais aos deuses do paganismo. Bom conhecedor da mitologia e da filosofia clássicas, encontramos na obra escrita de Juliano, para além de iracundas diatribes contra os “ímpios Galileus”, outras críticas não menos acerbas contra os “cínicos mal educados”. É o mesmo tipo de crítica que já o referido Luciano lançara sobre os que lhe pareciam falsos filósofos, que se aproveitavam do estilo de vida canina para viverem da vagabundagem e da pedinchice. Nem escapavam ao imperador os que se dedicavam profissionalmente ao ensino da retórica: num discurso Ao Cínico Heráclio, critica uma peça teatral de que este era autor, mal escrita, pior representada, insuportável de ver, impossível de aplaudir. Pois não é que o nosso autor, “mal educado”, se tinha atrevido a dizer mal dos deuses?... E vá o erudito Juliano de lhe escrever a ensinar-lhe mitologia e estilística dos géneros literários. Ora, em certo passo deste escrito, o assumido restaurador antiquário fala de bandos de falsos cínicos que vagabundeavam de lugar em lugar, desassossegando os rústicos – compara-os aos giróvagos missionários da “seita dos Galileus” e chama-os de apotaktistes, “renunciantes”...

O nosso Diógenes tinha-se como sem cidade (apolis), sem casa (aoikos), sem pátria (esterémenos), pedinte (ptochós) e vagabundo (planetes), coisas que o sofisticado retor e o selecto imperador dificilmente suportavam de ver e cheirar. Ao que parece, estes cães fedorentos terão sobrevivido até finais do séc. V, mas, depois de Peregrino, a maioria deles deixou de si pouco mais que o nome; excepção, na primeira metade deste século, terá sido um chamado Máximo, que praticou a vida de cão antes da de cristão, e que depois da sua chegada a Constantinopla se comportou de tal maneira que o patriarca S. Gregório de Nazianzo lhe dedicou dois panegíricos. O último de que há notícia terá sido um tal Salústio de Emesa, de quem só se sabe que levou vida ascética e começou como discípulo do neoplatónico Isidoro de Alexandria. Em 529, por ordem do imperador Justiniano, fechava-se a escola de Atenas, fechando (temporariamente...) o ciclo da filosofia pagã greco-latina.

Acontece que, pelo séc. VI, entrava por uma das portas da cidade de Emesa uma estranha personagem. Vinha sozinho, vestido como um monge, mas sem o cinto, que tirara para prender e arrastar atrás de si um... cão morto. Logo a garotada que por ali vadeava o rodeou e troçou: - “Eia, um monge maluco!”


« No dia seguinte, que era domingo, pegou numa quantidade de nozes, entrou na igreja ao começar da liturgia, e pôs-se a atirar nozes aos presentes e a apagar as velas. Quando em tumulto procuraram imobilizá-lo, subiu ao púlpito e de lá ainda alvejava as mulheres com as nozes. Com grande arruído expulsaram-no da igreja e, de caminho, ia voltando de pernas para o ar as mesas com bolos e doçaria dos vendedores, que se atiraram a ele e quase o mataram. » Assim foi a entrada em Emesa do monge Simeão – o “louco por amor de Cristo” (salos dia Chríston) -, tal como no-la descreve a biografia que dele fez o bispo Leôncio de Neápolis ( actual Limassol, Chipre), cerca de um século depois. E, depois das nozes, seguem-se quilos de tremoços, que o santo homem, empregado em vendê-las, antes as “comia como um urso”; e seguem-se os mesmos efeitos de intestinal ventosidade que era uma das marcas do nosso Diógenes e do seu discípulo Crates. E quando, a seguir à ruidosa flatulência, urgia expelir algo de mais sólido, não tinha dúvidas de acocorar e aliviar-se em público, onde quer que estivesse. Nem lhe faltou a mesma saborosa alternativa à diogénica dieta: carne crua. Abunda minuciosa e longamente nestas anedotas a pitoresca narrativa do bispo, um extraordinário documento da entrelaçada síntese do ascetismo canino e do cristão. S. Simeão, ainda hoje venerado no santoral das igrejas orientais, havia nascido de famílias ricas da Edessa síria, e tinha sido monge por espaço de vinte e nove anos no deserto da Judeia. Dirigiu-se depois até Jerusalém, para reaparecer em Emesa deste jeito, divinamente seguro e confiado que todo o bem que pudesse fazer – e fez - na cidade, até à sua morte, não lhe seria imputado pela sociedade ao seu juízo e vontade meramente humanos. E, de facto, só uma das pessoas que lá habitavam sabia da sua vera e lúcida identidade.

O tema da santidade escondida numa loucura fingida e oposta à comédia social que se julga séria, não era inédito: inspirando-se na letra do 4, 10 da primeira carta de S. Paulo Aos Coríntios, já aparece nas vidas dos Padres do Deserto e não tem falta de exemplos na hagiografia do final da Antiguidade, aliás com pelo menos um precedente na Emesa síria: Santo Aleixo (romano de nascimento), para não falar de um outro (e mais famoso) Simeão, com seus companheiros e continuadores estilitas. É toda uma tradição cultural que viria a condicionar a ideia medieval da loucura como uma “doença sagrada” e que se reflecte ainda no Elogio que dela fez, nos princípios do séc. XVI, o erudito humanista e um dos mais radiantes luminares da philosophia Christi, que foi Erasmo de Roterdão. No lado oriental da cristandade europeia, é uma tradição que perdurou viva até ao séc. XX nas extraordinárias figuras dos chamados yurodivye russos.

No caso do nosso Simeão, cumpre dizer que a sua entrada com o cão morto atrás não tem que significar a morte do cinicismo pagão, revivido na ascética cristã ; como já foi notado por alguns, pode significar Cerbero, o cão guardador da entrada do Hades, na mitologia helénica : o santo como vencedor do guardião dos infernos, ao entrar nos infernos da cidade. Já quanto ao que dele se conta logo a seguir na igreja, não tem sido tão comentado... Sublinhemos apenas que muito honra ao sr. bispo de Neápolis não o ter omitido.

Tenho assim cumprida a promessa feita aqui ao meu leitor de farejar até onde nos levaria o rasto evanescente do Cinicismo na Antiguidade final.

Uma palavra agora, e breve, sobre o raro ícone apresentado supra. É uma representação do popular S. Cristóvão, cujo nome e naturalidade se ignoram ( Christóphoros, quer dizer “o portador de Cristo”). Teria nascido em remota região do norte de África, nos confins do mundo conhecido, em terras que se acreditava habitadas por canibais, ciclopes, ciápodes, hermafroditas e... cinocéfalos - homens com cabeça de cão. O imperador Diocleciano, em campanha militar na região (301-302), de lá o trouxe como escravo para Antioquia, onde foi baptizado e depois teria morrido martirizado, a 9 de Julho de 308. Data de 452 a primeira igreja que lhe foi dedicada, na Bitínia. Uma legenda irlandesa credita-lhe a cinocefalia nata e conta que, a pedido de Cristóvão, foi um anjo de Deus que lhe soltou a língua (sem lhe alterar a fisionomia) para a fala humana e a pregação do Evangelho divino. Outra legenda, popular entre finlandeses e russos, lê diferentemente: a fisionomia era de seu natural humana, e muito atraente às mulheres; depois de baptizado, pediu a Deus que lhe desse uma cara de feição a não ser mais tentado nem incomodado... Na famosa Legenda Áurea , compilação medieval do bispo genovês Tiago de Voragine, o leitor interessado encontrará um relato dos trabalhos deste Cristóvão, que era de altura gigantesca e forças hercúleas, incluindo o célebre encargo (que lhe foi ordenado por um eremita) de carregar com pessoas comuns de uma margem para a outra de certo rio de torrenciais, tormentosas águas... “ em que muitos se têm perdido e morrido ”. Lá lhe apareceu uma criança a solicitar-lhe travessia. Parecia fácil empresa ao gigante passar o menino ao ombro. Mas o menino era Jesus, e “pesou-lhe como se levasse o mundo às costas”...

Não preciso lembrar ao leitor que Hércules ou Héracles era o sempre reivindicado herói patrono dos filósofos que tinham como cabeça de escola um que a si mesmo se chamava Cão. Mas não será inoportuna a sugestão de que neste cinocéfalo cristão, como no louco Simeão, temos duas figuras daquele therion monstruoso que tanto assustava o polido e político Aristóteles...


[ O leitor de inglês interessado tem aqui a vida de Simeão, precedida de um estudo que não deixa de comparar a vida do cão com a do cristão. Desde os finais dos anos 70 do XX, há historiadores que morderam o filão, e alguns levaram as comparações até à pessoa e comportamento de Jesus.
O leitor de português não deixará de se interessar pela maravilhosa versão de Eça de Queirós, no seu conto S. Cristóvão, unanimemente considerado pelos especialistas como pérola acabada da excelência literária do seu autor. O nosso polido e político cônsul parisiense, quando a morte o surpreendeu, dedicava-se a escrever Lendas de Santos... ]

segunda-feira, outubro 25, 2010

NO DESERTO



Nove anos apenas depois da última, a mais geral e a mais cruel perseguição do Império aos cristãos, é o próprio imperador romano que se associa ao Cristianismo e lhe dá édito de segurança e tolerância universal, no ano de 313. Eram passados duzentos e quarenta e nove anos sobre o horrível suplício dos primeiros cristãos pelo incendiário Nero, que queria reconstruir a velha Roma à imagem dos seus planos de esteta sofisticado e supremo arquitecto. Mas os planos de Deus eram outros. É agora Constantino que vai reconstruir dos alicerces uma cidade nova que fosse como a capital dum Império renovado, mais chegado às fontes do Oriente, livre da pesada herança pagã de Roma, e mais capaz duma católica universalidade: Constantinopla.

Um dos mais maravilhosos trechos da maravilhosa História da Igreja, impossível de contar só em termos de discurso humano - e capítulo capital que muito importa não esquecer, agora que o Império se vai reconstituindo sob o nome de “União Europeia”... -, é como um punhado de gente da mais ínfima plebe, vinda do Médio Oriente, consegue em trezentos anos assentar-se no trono do Império. Foi como se pegasse e propagasse como um Fogo, respondendo ao fogo de Nero... E começa então uma não menos maravilhosa parte da História: a das dramáticas relações entre o Estado normal da Civitas terrena temporal e a norma eterna da Civitas Dei em peregrinante missão no mundo - a constituída cidade nova do Novo Israel, que é a Igreja.

Pois é precisamente nestes anos em que o Império começa a estender para a Igreja os braços no abraço mortal da “religião de Estado”, que começa a aumentar um extraordinário movimento de migração das cidades para o deserto: primeiro no Egipto, para as regiões da Nítria e da Sétia, depois na Palestina e na Síria, são milhares de pessoas, homens e mulheres, que se separam da sociedade mundana para viverem isolados (eremitas) ou em pequenos grupos (cenobitas) um novo género de vida (monástica). Nos princípios do século VI, com Bento de Núrsia - o santo patrono da Europa... -, o movimento generaliza-se a todo o Ocidente.

A anacorese (retiro, distanciamento) não é originariamente cristã. Possivelmente os pitagóricos, na Grécia antiga; os essénios, na Judeia; os Terapeutas, à margem de Alexandria, são exemplos anteriores, no quadro da cultura ocidental. O sinal cristão está em dar-se tal retiro no preciso momento em que o Cristianismo triunfa aparentemente na polis.
O cristão sinal de contradição é um corte com a floresta de enganos da comédia social que mascara o deserto e a solidão humanos em que nos encontramos neste mundo. Procura replantar, no deserto aparente da terrestre geografia, a planta de uma humanidade vivente (quase) só duma vital relação a mais imediata e directa possível com Deus; e (quase) nada das económicas relações segundo “a carne e o sangue”, que alimentam a planta das cidades terrenas. ( Os "gostos ardentes" e as "paixões fortíssimas" que nos afectam como a este aqui. ) Em poucas e precisas palavras: deixar tudo o que é nada; recuperar no que parece nada o que é tudo.
Como se sabe, os primeiros cristãos tinham esperado “para breve” o regresso de Cristo e o fim deste mundo. Mas o que por toda a parte têm de enfrentar é o César na sua típica duplicidade: primeiro, com a mão das perseguições; depois, com a das consagrações. Alguns resistem a estas, como tinham resistido àquelas, e cortam: se não é Cristo, mas César, que vem ao seu encontro, apartam-se eles para estar só com Cristo, como antecipando a Sua vinda, esforçados na resolução de entrar pela "porta estreita" e como “forçando a entrada” no Seu Reino ( Lucas 13, 24; cf. 16,16).
Replantar, disse. A espiritualidade do deserto é a tentativa de replantar no corpo da existência humana o tronco vital do convívio directo com Deus aparente no mundo, com era no Paraíso, em que o tempo ainda não contava nem afectava a humanidade ferida de morte, sujeita à geração e à corrupção. (O leitor não esqueça que a memória duma “idade de Ouro” persistiu em muitas e as mais díspares tradições culturais da humanidade.) Ora isto importa uma mutação existencial que, com a graça de Deus, ajude a reparar a desgraçada conversão que transformou o mundo de um divino Jardim num Deserto do abandono de Deus.

O primeiro passo desse concertar-se com Deus é reparar nisso: que este mundo é – na verdade – um deserto esvaziado da intimidade de Deus, que desertámos e tentamos recompôr e disfarçar multiplicando o mobiliário supérfluo, seguranças e comodidades. Reparando nisso, o homem-mutante parte para o o deserto que mais literalmente significa essa verdade, e que será o seu laboratório. Neste laboratório exercerá (aiskesis: exercício, ascese) a tempo inteiro o labor manual e o oratório espiritual da leitura, oração e contemplação. (Ora et labora foi a divisa escolhida por Bento de Núrsia para a Ordem Beneditina, cuja Regra propõe um regime equilibrado entre trabalho manual e espiritual.)

Trabalho espiritual, amigo leitor? Sabemos lá nós hoje lidar no nosso mais verdadeiro e mais digno trabalho!... E, no entanto, talvez tenhamos de o reaprender, se queremos sobreviver à civilização do desemprego e do ócio em que vamos entrando... Pois tal é, nestas coisas o critério do verdadeiro: aparentemente desaparecido um tempo, com o tempo volta sempre ao de cima – porque em alto está o lugar natural da verdade. Sabemos que essa lida tem exigências custosas e efeitos curiosos. Quanto às exigências, começando logo pela aparentemente mais fácil da despreocupação com cortes de cabelos e barbas (não tenho informação quanto às unhas), já teríamos aqui um obstáculo insuperável para os machos beldades que andam por cá a depilar-se em esteticistas, nesta parte rica e enfartada do mundo! Então, dos máximos jejuns e mínimos de sono, nem já é preciso falar. Quanto aos efeitos curiosos, posso pegar também na questão dos cabelos e barbas. À nossa vista cega de civilizados, tais mutantes pela ascese poderiam assemelhar-se mais a bestas feras que aos anjos. Ora, em certo sentido, assim era de facto, por isso que logo os primeiros eremitas, Paulo e Antão, aparecem figurados em estreita associação e pacífica conversação com os animais, recuperando o tempo e lugar em que nos entendíamos bem com eles. Veja o leitor esta história acerca do monge Áfon, que viveu sessenta anos no deserto do Alto Egipto, aliás muito curiosa a outros títulos (até pela crítica oposição entre vida anacorética e vida cenobítica, já regrada por regras huamanas: a primitiva regra de S. Pacómio). –

« Havia no deserto um anacoreta que pastava com os búfalos. Um dia dirigiu-se a Deus e perguntou-lhe: “Senhor, ensina-me aquilo que me falta.” Então uma voz respondeu-lhe: “Entra em certo cenóbio e faz aquilo que te disserem.” Ele dirigiu-se então a esse cenóbio e aí permaneceu. Não conhecia nada dos trabalhos dos monges, até que os pobres monges começaram a ensinar-lhe os diversos trabalhos, dizendo-lhe: “Faz isto, idiota! Faz aquilo, velho tonto!” Aflito, o anacoreta disse a Deus: “O trabalho dos homens não o entendo. Mandai-me outra vez para junto dos búfalos.” Deus consentiu e ele regressou ao capmpo para pastar no meio dos búfalos. Mas nesse lugar os homens tinham colocado umas redes. Alguns búfalos caíram nelas e, em certa altura, caiu também o ancião. E ele teve então o seguinte pensamento: “Tu, que tens mãos, solta-te das redes.” Mas depois respondeu-lhe outro pensamento: “Se és um homem, decide-te e vai viver com os homens. Mas, se és búfalo, então deixa de ter mãos.” E ficou envolto nas redes até ao outro dia. Quando os homens vieram apanhar os búfalos ao outro dia, ao verem o velho ficaram tolhidos pelo terror. Ele não disse palavra. Soltaram-no e deixaram-no partir. E ele afastou-se, correndo atrás dos búfalos. »

A "voz" é bem capaz de ser genuína: note-se (e note-se bem) que não lhe diz - "Se és um anjo"... mas, ao contrário, "se és um búfalo"; tenta-lhe (frustemente) a reacção soberba ( -"Eu não sou um búfalo!"), mas sugerindo abertamente a extrema humildade, acessível a quem sabe de ciência e consciência certas que não é um búfalo tanto como não é um anjo. Os prémios da prova vencida são dois: um corpo ligeiro, capaz de acompanhar a corrida dos búfalos; e um livramento: afastar-se daqueles que têm mãos rapaces para a terra daquele provérbio nosso que diz assim: A terra é de quem tem manha e mais apanha.

[ O eremitismo não desapareceu ainda hoje. O leitor curioso tem aqui um bom sítio para o confirmar: http://www.hermitary.com/

Já o leitor interessado tem actualmente em português uma antologia de Ditos e Feitos dos Padres do Deserto, organizada pela grande poetisa italiana que foi Cristina Campo (em trad. port. do poeta Armando Silva Carvalho). Dela retirei a história de Áfon.

As Vitae Patrum têm acompanhado a cultura portuguesa desde os seus primórdios, com a compilação feita no séc.VI por S. Martinho de Dume.

O harmonioso equilíbrio entre a ascese eremítica e cenobítica tem sido realizado desde 1084 nos “desertos” da Ordem Cartusiana ( http://www.chartreux.org/pt/frame.html ) que vai para mil anos de existência sem ter precisado de qualquer reforma. No ano 2000, o realizador cinematográfico Philip Groning conseguiu autorização para levar as suas máquinas até onde jamais alguma câmara tinha entrado: http://www.youtube.com/watch?v=OVrDLCvMcOQ&feature=related

Em ícone : S. Macário do Egipto (séc. IV), custodiado por um exemplar da múltipla, variegada, insólita fauna que povoa o deserto.]

[Este postal não trata do passado, que não sou historiador. É dedicado aos "selvagens" que, no futuro, tentando refugiar-se longe das cidades junto do que restar de Natureza viva, serão localizados, perseguidos, caídos na Rede e abatidos como "búfalos". A não ser que... ]

ADENDA



Aqui pois finalmente com rigores
Insofríveis de todo e desusados,
Passam a vida estes santos sofredores
De todo o trato humano desterrados.
Seu comer só são lágrimas e dores,
Quando muito uns legumes incruados,
Sem azeite, e sem gosto, que parece
Que tudo o cá da Terra lhes falece.

Cada um deles parece certamente
Nas chagas e feridas rigorosas
Outro franciscano santo e penitente,
Que cinco teve tão miraculosas.
A eles lhes parece ouro fulgente
Estas alegres e purpúreas rosas,
Porque enfim quem d’amor está prendado,
O rigor lhe parece mais folgado.

Bem mostram pois aqui neste alto Monte
Com sua sujeição e obediência,
Com seus corpos de sangue feitos fonte,
Com sua austera vida e penitência,
Que muitas excelências deles conte:
Mas falta-me o melhor, que é a ciência;
Mas somente direi que deste Alverno
Tremer fazem o horrífico Inferno.

Postos em Cruz estão, ninguém duvida,
Pois se a Cruz são trabalhos e rigores,
Que mores podem ter com sua vida
Cheia de tantos descontos e suores!
A Cruz é só seu bem, sua querida,
Nela têm seu descanso e seus amores,
Sua glória, seu prazer, sua luz pura,
Seu remédio e seu bem, sua ventura.

Descalços, pobrezinhos, remendados,
Cansados e famintos, abstinentes,
De feridas e de açoites retalhados,
Sem cama, sem camisa, continentes;
Cozidos num burel e amortalhados,
E com outros rigores diferentes,
Passam a vida aqui neste deserto
Para se verem do Céu muito mais perto.
Tais são algumas das estâncias dedicadas ao convento franciscano da Santa Cruz num poema seiscentista em oitavas e seis cantos titulado Serra de Sintra, de autor anónimo, escrito por alturas da Restauração.Versos como os transcritos, e outros do anónimo autor, não repugnariam a frei Agostinho da Cruz, que professou no convento de Sintra antes de ir para guardião do de Ribamar e depois para Santa Maria da Arrábida.

A fundação do convento da Santa Cruz da Serra foi ideia do nosso vice-rei na Índia D. João de Castro, proprietário do sítio, e da quinta da Penha Verde mais abaixo. Não a pôde executar em vida, e foi seu filho D. Álvaro de Castro que a levou a cabo a favor dos frades franciscanos reformados, chamados “Capuchos”, lá estabelecidos em 1560.

El-rei D. Filipe II, então senhor de Portugal, aqui veio de visita aos frades com quem seu sobrinho D. Sebastião gostava de praticar. Pedindo o soberano espanhol para si um púcaro com água, a fidalgaria que o acompanhava pediu ao guardião que o servisse com algum doce, para adoçar a el-rei a visão de tanta austeridade. O guardião trouxe-lhe o púcaro com um pratinho de passas. D. Filipe instou com o guardião que lhe pedisse alguma coisa de necessidade para o convento. O frade chamou o irmão cozinheiro e inquiriu se havia azeite bastante para a almotolia do refeitório (era mendigado à semana). Havia. Não precisava de nada, e beijou a real mão pelo cuidado em fazer mercê. Saindo do convento, admirado e agradado de tanto desapego, saiu-se bem el-rei apontando ao longe na direcção do convento jerónimo da Pena: - “Allá es la pena, e esta es la glória.” E depois ufanava-se de ter em seus reinos o convento mais rico (o Escurial) e o mais pobre de toda a Cristandade.

Ainda hoje à vista das celas o visitante pode corroborar a exactidão do velho cronista frei António da Piedade: « são estas tão estreitas que ordinariamente seus habitadores dormem encolhidos, e alguns mandaram abrir na rocha, que lhes serve de parede, buracos para acomodarem os pés; as portas têm cinco palmos de alto, e palmo e meio de largo; as paredes que as dividem são de vimes tecidos com barro; o forro de tudo é de cortiça e está nas portas pregada em grades de tosca madeira. »
Frei Honório de Santa Maria veio a estas celas pelo ano de 1561, contava já sessenta de idade, e chegou a guardião do convento. Talvez porque as achasse demasiado cómodas, « elegeu por cela uma cova que está na cerca .... cuja horrorosa vista intimida aos humanos por a verem, quanto mais para habitarem. Ninguém a vê sem que lhe sirva para despertador da morte; e todos ouvem assombrados que nela pudesse viver dezasseis anos contínuos Fr. Honório, contando já oitenta de idade. A sua cama era uma cortiça, e uma pedra ou pau lhe servia de cabeceira, sem outra cobertura com que se pudesse reparar dos frios mais que a de dois grandes penedos, que lhe impedem a claridade. »

A cova aonde esteve por dezasseis anos (não trinta, como exageram outros) fica documentada na fotografia, e lá está ainda hoje para edificar e despertar o visitante, que pode visitar o convento à vontade e beneficiar de horas de uma paz que o acompanhará multiplicada por dias.

[ A vida de Honório pode ler-se aqui na Parte I, Livro IV, Cap. XL do Espelho de Penitentes e Crónica da Província de Santa Maria da Arrábida, de frei António da Piedade (1728), acessível neste sítio digno do sítio do convento: http://soscapuchos.blogspot.com/2009/03/vida-do-veneravel-fr-honorio-de-santa.html

Um bom guia moderno para o visitante é O Convento dos Capuchos da Serra de Sintra- Percurso Histórico e Guia Interpretativo (2005), de Nuno Miguel Gaspar.
O poema anónimo do séc. XVII, possivelmente dum erudito frade jerónimo do convento da Pena, foi editado, anotado e publicado pela primeira vez por João Rodil, em Sintra, há poucos anos (1993). ]



quarta-feira, outubro 20, 2010

PROJECTOS EDUCATIVOS ( II )




« O verdadeiro ideal de educação postula o máximo respeito pelo desenvolvimento da pessoa humana. »
Álvaro Ribeiro


« 99% dos meus alunos não conhecem minimamente as regras da ortografia, da sintaxe e da pontuação. Escrevem pelo som e pelo sentido. » Isto confessava ao jornal Le Figaro uma professora do liceu francesa (ignoro de que ano), conforme reproduzia um diário nosso no dia 2 de Fevereiro passado. Essencialmente o mesmo tem advertido para o nosso caso a professora Maria do Carmo Vieira, entre outros. Um crescente número de alunos chega aos dez-doze anos de escolaridade pública mal sabendo ler e escrever na sua língua materna. A situação interessa ao Projecto Educativo de que falei anteontem : indivíduos sem recursos para se fazerem bem entender a si e bem entenderem os outros potenciam a dissociação e conflitualidade social, ficam mais isolados e mais à mercê de quem pense e fale por eles. De aí, por exemplo, o interesse na permanência (e alargamento) da “escolaridade obrigatória”, um aberrante conceito que choca imediata e frontalmente com o princípio da Liberdade... de aprender – ou de não aprender.

Uma palavra no postal de hoje sobre o alternativo Projecto Educativo da outra Cidade, pedindo ao leitor o obséquio de se referir às etapas (1) a (4), citadas no anterior, e que me parecem as essenciais a qualquer processo de instrução/educação humana. Nesta concepção alternativa, os humanos somos animais excepcionais na Natureza, criados à imagem e semelhança de Deus. Tal concepção está comprometida com uma educação que conduz da formação individual (1) para a dimensão pessoal e cívica das relações entre indivíduos e grupos (2) e (3), até à ecuménica ou mundial (4), em que cada um e todos se reconheçam e estimem na igual e universal condição de filhos de Deus. Eis aonde pode chegar o máximo desenvolvimento do indivíduo huamno - enquanto pessoa.

A respeitável e inalienável excepcionalidade dos humanos manifesta-se imediatamente na nossa linguagem natural. Nesta Cidade de Deus peregrinante, apesar de Babel, acredita-se que permanecem vivos e operantes na mente e na palavra dos humanos vínculos espirituais com o Verbo divino. (Não é uma crença originariamente cristã: nas culturas tradicionais dos povos, a linguagem “poética” era divinamente “inspirada”.) De aqui deriva o cuidado e o interesse de cultivar e desenvolver ao máximo as potencialidades da linguagem natural, que a tornem apta para as formas superiores da cultura e do culto. Ora, como é evidente, nesta concepção, a aprendizagem da lingua materna não pode ser senão seriamente cultivada e valorizada. E, como os grupos humanos se filiam e derivam biologicamente uns dos outros, assim também as línguas: de aqui também o cuidado e valorização extensivos àquelas línguas “mortas” que mais directamente têm a ver com as actualmente “vivas”: no nosso caso, a latina e a grega. Vê-se logo como o Projecto Educativo desta Cidade é afinal muito mais natural que o da naturalista, apostada antes na criação e desenvolvimento das linguagens artificiais (lógico-matemáticas) dos sistemas informatizados que gerem e controlam a vida social.

No Projecto Educativo da Cidade de Deus sempre se defendeu e defende o protagonismo do grupo familiar relativamente a (1). – “Casa de pais, escola de filhos”, como dizia o provérbio português, concordante com o (bom) senso comum e toda a investigação psicológica, que salienta a importância dos 5-6 primeiros anos de vida na formação da personalidade dos indivíduos. Para isto faz-se mister uma atenção exclusivamente dedicada e personalizada, que não é possível no infantário colectivista; também que os pais tenham uma crença (comum) muito ciente sobre o que seja para seus filhos uma boa educação (porque, como lá diz outro – “Casa onde não há crença logo aparece a desavença”) ; e, é claro, os meios para satisfazerem ao encargo responsável desse natural protagonismo. (Quanto a estes meios, também não há diferença entre o bom senso e a ciência psicológica: disponibilidade de tempo, boa disposição emocional e discernimento racional, muito mais do que o dinheiro e recursos materiais, é que são meios precisos essenciais.) Infelizmente para a saúde da nossa vida colectiva portuguesa isto afigura-se, em termos sociológicos, uma batalha perdida para a maioria: os poderes públicos foram bem sucedidos na estratégia de afastar as crianças o mais cedo possível de seus pais, e depois durante o mais tempo possível; por outro lado, tudo têm feito e continuam a fazer para destruir a família, sob pretexto de estarem apenas a reflectir “novas tendências e estilos de vida” (que eles próprios condicionaram!) e a garantir “direitos” aos indivíduos. Quanto aos novos casais, nem sequer têm condições para sustentarem um filho (apesar dos conhecidos inconvenientes do filho único). Mas o que nos interessa aqui é relevar quanto, também neste ponto, o Projecto naturalista, em comparação, revela o seu verdadeiro e perverso carácter: - é anti-natural.

Estas circunstâncias dramáticas de quase completa anomia social, moral e psicológica (chegámos ao 1º lugar dos maiores consumidores de ansiolíticos e anti-depressivos na Europa dos 27, segundo notícias divulgadas há dias) e desiquilíbrio ambiental (vejam-se as consequências para o abandono do interior por via das 3 mil escolas básicas que os mandantes actuais se propuseram encerrar, desde 2005), são apesar de tudo uma ocasião para que os cidadãos responsáveis se comecem a pôr a questão que, não só em termos de sociologia e política educativas, mas de prudente bom senso, é a mais básica de todas : Se o que se chama “Estado” não passa hoje dum campo assaltado e saqueado por díspares grupos de interesses particulares, convergindo apenas no saque da riqueza pública, e de comissionados capatazes de interesses “europeus”, - a quem é que deve entregar-se a educação das novas gerações? (Uma questão, aliás, que se aplicaria na mesma em circunstâncias políticas normais, e que tem a ver com quais devem ser as funções essenciais dos detentores da administração pública num Estado. É de reparar que os poderes que tradicionalmente lhe são adstritos - legislativo, executivo, judicial – não implicam de maneira nenhuma que os responsáveis superiores da administração pública/política se arroguem a pretensão de “educadores” da sociedade civil : um desorbitamento totalitário, aliás historicamente recente, datável da ditadura napoleónica.)

Voltemos a enfocar o nosso assunto deste postal, de que não me afastei muito, porque não deixa de ser altamente significativo que o processo histórico de apropriação da Educação pelo Estado consisitiu essencialmente nisto: um processo de expropriação do tradicional protagonismo que neste campo a Igreja tinha nas sociedades ocidentais. (A fase seguinte à expropriação do poder temporal eclesiástico e dos seus bens patrimoniais.) É um processo que se fez contra ela; e razão há para falarmos de dois Projectos que se opõem, e sem conciliação possível neste mundo.

De acordo com o sugerido no postal anterior, eu diria que só a força de contingentes circunstâncias sociais e/ou naturais podiam levar o Projecto naturalista de (3) à fixação em (4), isto é, à consideração da universal condição humana (que para o naturalista não passaria duma abstracção irreal). Circunstâncias, entre outras, tais a descoberta da identidade do genoma humano e o processo de “globalização”. É este o último plano em que tudo se joga. Mas, a este nível, não parece viável, no Projecto naturalista, nenhuma defesa genuína e consistente da universalidade dos Direitos Humanos, inviável se apartada duma Lei Moral cuja razão suficiente e eficiente é - e só pode ser - cristã. (Temo-lo justificado aqui no esclarecedor confronto com o sadismo e o amoralismo.) A este nível já chegara, porém, Auguste Comte, e foi presciente : junto das grandes “massas”, só uma “nova religião” poderia organizar as sociedades nacionais e as relações internacionais: e essa, para o positivista ateu, não podia ser outra senão a “religião da Humanidade”. Pensava ele que o Cristianismo era uma religião entre outras (mas mais perigosa, pelo fermento “anarquista”...) e, portanto, como todas, factor de insuperável divisão entre os povos... Ora, esta “religião da Humanidade” pode muito bem ser instrumentalmente útil ao Projecto naturalista, mas fruste em última análise: não só por causa da sobredita questão dos Direitos Humanos (cuja tendência para ser gradualmente esquecida ou pervertida é já hoje nítida a nível de organismos como a ONU), como principalmente vai contra toda a lógica permanente e final desse Projecto: o apartheid entre os “nossos” e os “outros”, os homens comuns e os homens “superiores”.



[ Muito me praz associar a este postal o nome de um dos maiores filósofos portugueses do século XX – Álvaro Ribeiro (1905-1981) – que, no domínio da filosofia da educação, ampliou a aprofundou teoricamente a obra (aqui mais prática que teorética) de seu mestre Leonardo Coimbra. Álvaro Ribeiro, embora crente em que o Estado era “também responsável pelo destino da cultura, pela realização de fins espirituais”, bem sabia que a escolaridade é coisa distinta, e que pode ficar bem distante, da educação. ]

ADENDA

O leitor pode ter ficado desagradavelmente surpreendido pelo plano demasiado alto em que pus a questão educativa, sem maior atenção e aplicação ao concreto da situação portuguesa. Mas as alusões esparsas que lhe fui fazendo parecem suficientes, considerando que a inércia da situação actual se prolongará por muitos e maus anos : atados que fomos de pés e mãos à “União Europeia”, acompanharemos o ocaso duma “democracia” (que subsistirá nas televisões e mediática propaganda) para o que, de facto, já é uma entenebrecida Oclocracia tecnicamente controlada por oligarquias de vocação imperial, segregacionista e esclavagista; isto enquanto prossegue entre nós o processo de reconfiguração social e cultural a que só acho paralelo no que passámos entre os sécs.V a X (mas que agora será mais apressado).

Contra essa inercial tendência, dir-se-ia que só uma revolução política. Como se sabe, ou facilmente intui, o subsistema educativo, na medida em que reflecte e reproduz o sistema social, só muda significativamente com a mudança na organização política do sistema social. Ora, o que a actual e previsível futura situação tem de (quase) inédito, historicamente, são estas duas exigentes características : a mudança teria de ser uma verdadeira revolução e, ao mesmo tempo, não será nem pode ser só política. Está encerrado o ciclo das “revoluções políticas” do género das que, entre 1820 e 1974, não têm sido senão golpes militares promotores de epidérmicas recomposições sociais : inalterada ficou sempre a mesma mentalidade subserviente e dependente do “Estado”. Acontece que este “Estado” não é hoje em Portugal mais que um estado de coisas tão mortífero para a sociedade nacional, que só merece propriamente um nome: etnocida. (Basta reparar no futuro que está reservado aos novos – desemprego, trabalho precário e escravo, ou emigração –, e a eutanásia socialmente assistida para os velhos; e, para todos, a condenação perpétua ao “serviço da dívida” para com os pagadores estrangeiros da vida de pobres que andámos a fazer de ricos.)

A libertação da sociedade civil relativamente a este “Estado” exigiria, pois, uma mutação mais profunda e sem medida comum com qualquer daquelas “revoluções políticas” que historicamente temos conhecido. Mas tal reivindicação de uma genuína Liberdade de ensinar e aprender - ou de não aprender -, liberdade que é (torno a repetir, porque já é tempo de ouvir!) incompatível de princípio com qualquer teoria e prática de escolaridades “obrigatórias”, - não se antevê. ( O que temos visto é a débil e frouxa resistência dos pais e autarquias ao encerramento e transferência compulsivos das crianças de tantas escolas básicas, desde 2005, um depressivo sintoma da falta de iniciativa resoluta e autónoma da sociedade civil na defesa dos seus interesses mais vitais. Assim se perdeu a oportunidade histórica de chamarem ao seu directo controlo e responsabilidade a gestão do património edificado escolar e da contratação e manutenção de professores para a educação dos seus filhos, ao menos nos nove primeiros anos de escolaridade. )

Uma reivindicação séria começaria por uma mutação da mentalidade : os juros mais altos e preocupantes não são os das finanças ou dos consumos, - são os do descaso multissecular de nunca termos levado a questão da educação a sério. ( Basta ver o tempo e a qualidade do debate que se lhe dedica nas campanhas eleitorais, comparativamente à obcecação com a “economia” ). Mas, tal mentalidade nova parece que só poderia resultar de uma educação nova que, por sua vez, parece que só poderia resultar de uma mentalidade nova...

É por isso que a reivindicação mais séria e consistente dessa Liberdade é a que de há muito tem sido e continuará a ser promovida e protagonizada pela Igreja. Uma reivindicação que é também um combate pela libertação da sociedade civil e pelos Direitos Humanos (veja-se o artº 26 da Declaração Universal de 1948, e o Protocolo 1, artº 2 da Convenção Europeia de 1950, acolhidos no 14º nº 3 da Carta dos Direitos Fundamentais inclusa no recente “Tratado de Lisboa”). Mas, única e precisamente por ser causa da Igreja, os poderes públicos só podem contrariar, de modo nenhum promover tal reivindicação. Os “novos poderes espirituais”, de que nos falava Comte, que querem “reorganizar a Europa” e o mundo, sabem muito bem que o mito moderno da “educação” é a tentativa de neutralizar e substituir a educação humana integral que é a educação cristã, convenientemente reduzida pela propaganda a educação “religiosa” e inimiga da “ciência”.

Agora, se o meu caro leitor quiser continuar à espera, como temos estado entre nós, desde 1820, que as mil reformas educativas mil vezes reformadas tragam enfim um Estado iluminado e competente sobre o que é e como é educar bem os seus cidadãos, - enquanto espera sentado terá muito tempo para ir meditando consigo se, além do mais, o grande mito moderno da “Educação” não se reduz afinal às naturais estratégias com que cada geração espontaneamente vai-se ajustando melhor ou pior aos sucessivos novos adereços e cenários em que vamos representando a tarefa de sobreviver no grande Teatro do mundo. O mais que exceda este estádio darwiniano que é o estado político das sociedades humanas, parece-me que já ficou suficientemente sugerido : os “fins espirituais” ( de que falava o meu caro Álvaro Ribeiro), transcendem os poderes públicos, que não lhes podem chegar e... não os podem evitar. Ora, o facto é que o grande embate entre as Duas Cidades não tem nem terá – como desde há dois mil anos... – nenhuma solução meramente “política”, e é já intratável ao nível dum conceito de cidadania “nacional” ou “internacional”. A questão já hoje confronta e directamente respeita ao homem universal : não a todos, em geral e abstracto, mas a todos e a cada um; convoca e decide-se no coração das razões e nas razões do coração de cada um de nós.


[ Um magnífico exemplo do tipo de livre decisão a que me refiro está na fotografia em baixo, e me conforta na esperança que tenho nas novas gerações, a quem tão pesados sacrifícios já estão e irão ser pedidos. Foi na praça de Tiananmen, em Pequim, Junho de 1989. Um outro exemplo, um belo raio de luz no ocaso das “democracias ocidentais”, foi a recente decisão sueca de atribuir o Prémio Nobel da Paz ao prisioneiro Liu Xiaubo, prisioneiro como nós, com a diferença de que ele passa mais tempo na cela, enquanto nós mais num distraído recreio, deambulando dum lado para outro... ]



segunda-feira, outubro 18, 2010

PROJECTOS EDUCATIVOS ( I )



« Visto o crescimento a que chegou o tipo de “homem gregário” na Europa, não seria altura de experimentar a metódica selecção, artificial e consciente, do tipo oposto ? »
Nietzsche
« Um novo poder espiritual, capaz de substituir o clero e reorganizar a Europa por meio da educação. »
Comte_____________________________

Os Projectos Educativos a que me refiro são os que interessam aos cidadãos de Duas Cidades e às respectivas opostas concepções do homem, do mundo e da vida. Convém lembrar que se trata aqui de cidadãos com interesses cosmopolitas, que se encontram misturados neste mundo, em todas as condições sociais e políticas.

O novo poder “espiritual” é o que vimos na semana anterior: a elite engenheira de empregados na inovação e manutenção dos sistemas automatizados de gestão e controlo de todos os sectores da vida social; os seus financiadores públicos e privados; e, sobretudo, o ainda mais restrito número dos altos sacerdotes apostados na separação das águas (humanos para um lado, sobrehumanos para o outro) e, a partir do caos e do nada (o “niilismo europeu”, de que falava Nietzsche), produzir com as suas engines of creation um remaking Eden: uma réplica caricatural e perversa, mas apelativa e cativante de «um novo céu e uma nova terra» (Apocalipse 21, 1)

Quanto à “educação”, não é difícil, nesta perspectiva, dar conta das estratégias montadas: para uma minoria seleccionada, preparação intensa e exigente em comteanos “conhecimentos positivos”; para a grande maioria dos desempregados, distracção e ocupação do tempo em “acções de formação” continuadas ao longo da vida, de formação em formação até... à reforma final.

As origens históricas deste Projecto advêm, no passado próximo, do “Iluminismo” setecentista, depois socialmente alinhado ao serviço do industrialismo progressista e positivista de oitocentos. O primeiro efeito histórico do Projecto foi a aniquilação da cultura popular tradicional nas sociedades europeias. Mas, ontem como hoje, também ele assenta no que essencialmente permanece inererente a qualquer projecto de educação, formal ou informal. (O informal subsume-se no normal processo de socialização dos indivíduos ao longo da sua vida social.) Quais são as suas finalidades permanentes essenciais ? –

A situação do sistema público educativo no actual momento da sociedade portuguesa, só comparável (não por acaso...) ao da “Justiça”, já foi apontada aqui. Como disse, é uma situação que não deixa de ser propícia ao repensar de raiz os alicerces dalguma reconstrução possível. Quando há nada (ou o heterónimo: caos), não é mau recomeçarmos humildemente por escutar as velhas palavras “instrução” (in+struere: compor, formar interiormente) e “educação” (e+ducare: conduzir, levar para fora), que temos usado ao longo dos tempos. No étimo significado dos termos estão nítidas as finalidades inerentes a qualquer projecto educativo humanamente completo:

(1) A formação da personalidade individual para (2) levar os indivíduos a serem capazes de sair do seu interesse privado até à civilidade social, (3) à cidadania política e (4) à universal humanidade.

Eis as complementares vias da instrução e educação, que se implicam e correspondem reciprocamente. Nos dois últimos séculos o paradigma dominante tem enfatizado (1) e (2), aliás praticamente reduzidos a conhecimentos e competências para uma empregabilidade profissional, e serviçal da engrenagem montada dos interesses sociais e económicos dominantes. Ora, antes do mais, eu perguntaria ao meu leitor português: - quanto a (1) onde está, no actual sistema público de ensino, a formação e robustecimento da vontade, tão essencial à liberdade ? E onde, a conexa formação e correcção da sensibilidade, para que a vontade não desvie duma recta razão alinhada com a lei moral? E onde, a “educação cívica”, essencial para a passagem de (2) a (3) ? Já vê que não havia exagero na redução que fiz do meu diagnóstico a uma palavra: nada.
( Quanto à memória humana, essencial ao desenvolvimento da identidade das pessoas e das culturas, já sabemos que está a ser evacuada e descarregada para os computadores...)

É de reparar que o Projecto que interessa à Cidade naturalista parecia não ser capaz de chegar a (4). De facto, para o naturalismo, existem indivíduos, grupos nacionais, estados políticos; a “humanidade” seria uma abstracção genérica sem nenhuma real concreção existencial. Mas a emergência e expansão da cultura tecnocientífica, coordenada com a expansão do capitalismo e dos mercados, os imperialismos políticos, juntamente com as questões ecológicas, forçaram esta concepção ao universalismo da “globalização”. Contudo, quer a este nível, quer no processo de (1) a (3), mantém-se constante o sentido: a formação de indivíduos para a coesão e liderança dos seus grupos (familiares, profissionais, políticos, etc.), no interesse desses grupos ou dos indivíduos que os lideram. De onde resulta a eventualidade possível de o interesse de um grupo, confundido com o intresse de alguns poucos indivíduos, não vir senão a beneficiar uns poucos (ou até um único), como se tudo de concentrasse e reduzisse afinal a (1). Tudo se passa assim como se, nesta concepção, tudo continuasse como “à lei da Natureza”, em que no grupo hierarquizado animal o interesse vital do grupo se identifica com o do seu líder ; e a educação formal não se distinguiria claramente dum natural processo de socialização. Mas, desta maneira, parece que não seria possível, neste Projecto, aceder plenamente à universalidade de (4). Assim parece, naturalmente; e é um ponto (não decisivo) em seu desfavor. Mas, como disse, foi obrigado a confrontar-se com o universal, pelas intrínsecas tendências totalitárias do Projecto e pelas circunstâncias sobrevenientes à “globalização”.
Historicamente, na perspectiva naturalista tradicional, (1) sempre foi da imediata e directa responsabilidade dos progenitores e parentela próxima. Mais recentemente, a mãe de família veio a ter um papel preponderante. Ainda mais recentemente, as necessidades capitalistas de mão-de-obra numerosa empregada o mais tempo possível, afastaram os pais dos filhos, estes entregues precocemente a instituições de formação colectivista e abandonados depois ao devaneio solitário com a televisão e os computadores. É este um ponto onde muito claramente se pode avaliar quanto os efeitos sociais da cultura tecnocientífica subverteram de todo a concepção naturalista tradicional, incluindo também a abolição forçada das diferenças na educação de homens e mulheres. Uma abolição deveras impressionante, porque apaga as mais óbvias e naturais diferenças entre os indivíduos, e anula o senso comum tradicional que, em respeito a essas diferenças, previa diferentes formas de formação para rapazes e raparigas. Separando, por um lado, os pais dos filhos e, por outro, misturando os indivíduos com desprezo das suas mais óbvias diferenças, e acabando por os isolar, afogar e arrastar todos nos mundos virtuais da televisão e da Rede, a concepção “naturalista” veio afinal a revelar-se como o que essencialmente é : - anti-natural. E isto é consistente com o outro resultado que, desde o início, acompanha a expansão do capitalismo tecnocientífico: a conspurcação e aniquilação do meio ambiente natural. (Mas, como sugeri no postal anterior, este Projecto está hoje no ponto de questionar o que é “natural” ou “artificial”, com o esbatimento deliberadamente promovido de fronteiras tradicionalmente estabelecidas. É uma questão para a qual, creio eu, só o Projecto alternativo tem uma resposta racionalmente suficiente.)

Com o desemprego crescente de homens e mulheres descartados por um sistema de produção cada vez mais altamente especializado, maquinizado e automatizado, e com a reforma profissional de muitos, dir-se-ia que (1) pode volver ao controlo directo de pais e avós. É, sem dúvida, uma oportunidade nas famílias que resistirem à dissolução. Teríamos pais com bons níveis de qualificação escolar e disponibilidade para chamarem a si o protagonismo na educação dos filhos, ou a intervirem mais e a exigirem melhor de outras instituições educativas, públicas ou privadas. Infelizmente, acho esta possibilidade ainda longe de uma oportunidade. E receio muito que o maior número, sem nenhuma verdadeira educação familiar ou escolar, embrutecido por toda a espécie de drogas e por um ócio sem sentido humanamente útil, não tenha oportunidade nenhuma. Mas, como já dizia Demócrito, ocasionalmente encontra-se mais sabedoria na gente nova do que nos velhos: pode ser que em futuras gerações um certo número de jovens destemidos e alérgicos a computadores, ou precocemente crescidos e advertidos por sofrida experiência própria, ensine a seus alienados pais que é muito mais digno e interessante jogar a vida com a Natureza viva (que restar) do que jogar no Farm Ville...

Tenhamos esperança.

sexta-feira, outubro 15, 2010

RUMO A TITÂNIA



Já saiu desta praia e anda em cruzeiros caribenhos o grande senhor dos mares e dos mil milhões de euros que custou: 362 metros de comprimento, 65 de largura e 50 de altura equivalente a dezasseis andares, deslocando 222 900 toneladas. Quinze vezes maior do que o célebre Titanic. Apresenta aos 5 400 passageiros um “portefólio” de 37 categorias de acomodação, entre as quais 28 suites de dois andares, com 52 metros quadrados cada. Entre as muitas comodidades e atracções, dezenas de esplanadas e bares, um deles elevatório; um Royal Promenade que é um enorme centro comercial iluminado a luz natural, com lojas das mais prestigiadas marcas mundiais; um espectacular auditório com capacidade para 1 350 espectadores; uma pista de gelo; carrocéis infantis para os mais novos e uma radical pista de slide com 25 metros; uma parede de escalada anexa ao enorme Aqua Theater; um Central Park ajardinado com 12 mil plantas e 56 árvores, dispondo de “trilhos ecológicos” (sic) para as áreas de lazer e restauração anexas... Ah, não me esqueça o mais importante: um casino com 400 máquinas e quase outras tantas mesas de jogo.

É uma esplêndida cidade flutuante para gerontes milionários reformados do passado e os sempre jovens milonários clonizados e informatizados do futuro se encontrarem e perpetuarem as heranças. Com toda a segurança, que não há piratas somalis capazes de abordagem ao mastodonte. E longe, muto longe das cidades cada vez mais invadidas dos gangues dos subúrbios, apesar de todos os “resorts” e condomínios fechados e fortificados. É, não há dúvida, a opção mais segura quando a área terrestre dos três Impérios globais coincidir toda com a de um imenso campo de concentração. E não há que ter medo do mar, porque pode passar-se a viagem inteira (a vida inteira...) dentro do barco sem ver mar nenhum à volta: só gente bonita, lindos jardins e lojas à volta de si. Pode ser até que este barco seja submersível e, nos fundos mais fundos do mar, os selectos passageiros não vejam senão um grande e radioso céu azul sobre as cabeças... Ou pode ser que seja este barco aquela nave em que o sr. Stephen Hawking sonha levar a “humanidade” salva duma terra inabitável a colonizar o outerspace. E então teríamos que este Oasis of the Seas é um protótipo não muito distante do... Oasis off the Earth.

- Quê, ele disse “humanidade”? - O leitor do meu último postal já sabe de quem é que se trata...

Quanto a mim, embarco marinheiro deste aqui, às ordens do comandante Kierkegaard:

« Encontrar-se tranquilamente sentado num barco, por um tempo de calmaria, não constitui a imagem da Fé. Essa imagem é manter a embarcação, quando uma corrente a impele, com entusiasmo e à força de braços, sem procurar o abrigo de um porto .... Enquanto a inteligência, qual passageiro desesperado, estende os braços para a terra firme, mas em vão, a Fé vai trabalhando em profundidade, com todas as suas forças: alegre, a fé triunfa e salva a alma. »




quarta-feira, outubro 13, 2010

ÚLTIMOS AVISOS...





 « Como chegar a um grande objectivo se não sentimos primeiro em nós a força e a vontade de provocar grandes sofrimentos? Saber sofrer é a coisa mais insignificante: mulheres fracas, escravos mesmo, chegam muitas vezes a ser mestres nessa arte. Mas não perecer de miséria interior, não morrer de incerteza quando se causa um grande sofrimento e dele se ouve subir o grito, eis o que é grande, o que pertence ao domínio da grandeza. »
 Nietzsche

 «Problema: com que tipo de meios se poderia atingir uma forma estrita do grande niilismo contagioso; uma forma que, com uma probidade totalmente científica, ensine e pratique a morte voluntária, e não a arte de continuar vegetando miseravelmente, prevendo uma “pós-existência” enganadora .... »
Nietzsche

« O poder espiritual ficará nas mãos dos sábios, e o poder temporal pertencerá aos chefes dos trabalhos industriais. »
Comte

« Vamos ter seres quase super-humanos.... »
Funcionário (não identificado) da DARPA (in Johnathan D. Moreno, Riscos Imorais )

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Desde o Manhattan Project, que levou ao holocausto nuclear das populações de Hiroshima e Nagasaki, que os chefes do “complexo militar-industrial” norte-americano se convenceram de que os avanços em ciência fundamental podiam trazer uma vantagem estratégica decisiva. A vitória do comunismo na China e a guerra da Coreia demonstrou-lhes que as armas da tecnociência não envolviam só a física e a química: havia também que levar seriamente em conta as “ciências sociais” e a “guerra psicológica”. Desde os anos 50 que, ou nas suas próprias escolas, ou financiando e monitorizando uma vasta rede de projectos envolvendo as principais universidades americanas, que o Departamento da Defesa e, entre outras agências, a CIA dinamizam, coordenam ou monitorizam muita da investigação científica de vanguarda nos Estados Unidos em todos os domínios. Dei aqui um exemplo. Para além da consolidação da sua posição imperial global, tudo se faz, evidentemente, com um olho no business e o outro na Propaganda dos “benefícios” para a “qualidade de vida” da sociedade civil. A Arpanet, que comercialmente se transformou na popular Internet, é um exemplo bem sucedido; menos bem sucedida foi, nos anos 60, a estratégia de imergir os jovens em acid dreams para os distrair da crítica ao sistema social e político do imperialismo em guerra no Vietname. (Menos bem sucedida então, continua hoje aplicada: útil para cansar e domesticar as “energias” sempre potencialmente desestabilizadorasda juventude; e como indústria de “entretenimento”, muito lucrativa e difusiva da cultura americana.)

A tecnociência é a mutação cultural dos ideais duma ciência “pura” da Natureza, do Iluminismo setecentista, operada por influência da Revolução Industrial e, no século XIX, dinamizada pela tensão dialéctica entre o progressismo positivista (politicamente conservador) e o progressismo socialista que, na Rússia, viria a fazer a experiência da “revolução dos sovietes e da electricidade”. ( A dialéctica não se esgotou ainda hoje: o contrapolo do “Ocidente” deslocou-se apenas mais para leste: é o Mandarinato oligárquico chinês.) A tecnociência é essencialmente engenharia: um saber que é saber-fazer. O interesse aqui é o de mexer e mudar as coisas (pessoas, mundo natural e social) de maneira a maximizar as vantagens dos “nossos” ( nós e os nossos aliados) relativamente aos “outros” e aos caprichos ameaçadores duma Natureza “hostil”. (As vantagens dos “nossos” abrangem: desde as acções bolsistas em farmacêuticas com os precisos medicamentos para súbitas viroses gripais, até aos grandes ideais da “Democracia” e dos “Direitos Humanos”, de interesse universal, subordinados a posições de vantagem na concorrência em mercado “livre” mundial.)

Mas, saber-fazer não é saber ver. Ver, por exemplo, que não é afinal do melhor interesse dos humanos darem-se entre si e mexer na Natureza com sentimentos de ameaça, medo ou hostilidade, muito menos de exploração obsessiva e desenfreada. Quem não sabe ver, não vê nenhum limite para o mexer e remexer, apropriar e pôr a render; ou, se começa a ver, não tem capacidade nem vontade para se deter no seu “progresso” e “desenvolvimento”.

Não é por acaso que os Estados Unidos da América do Norte são hoje o hyperpower mundialmente dominante. Todas as potencialidades materiais e espirituais da cultura europeia puderam lá revelar-se, sem as peias sociais e políticas que as embargaram no velho continente. O essencial dessa cultura europeia pode simbolicamente figurar-se num corpo que tem em uma mão a Bíblia e na outra uma Espada. No novo continente, tudo começou mal: a espada substituída pela pistola e o genocídio ou o deslocamento forçado dos povos indígenas. Talvez por isso os norte-americanos preferem antes simbolizar-se na figura da Liberdade, de facho irradiando para o mundo. E, de facto, eu creio que nunca nos tempos históricos da velha Europa as pessoas individuais puderam estar tão soltas e tão à vontade como naqueles espaços imensos relativamente pouco habitados e pouco mexidos pelos índios asiatas. E, como não há liberdade sem variedade, basta reparar na coexistência que lá foi (ainda é) possível entre as famílias amish e as famílias mafiosas. Contudo, uma coexistência apartada num apartheid que a grandeza do espaço físico tem, para já, demograficamente permitido.

Um dos luminosos raios dessa Liberdade, que tem deslumbrado a muitos, é a “liberdade” económica. Um símbolo vivo desta está significado na fotografia supra: Las Vegas. E a questão que ela põe às diferentes tradições do socialismo europeu é esta: que outro regime económico teria sido capaz de, no espaço de tão poucas décadas (desde os anos 30), tão rapidamente fazer surgir dum deserto uma cidade próspera, sem desemprego nem pedintes?... – Só conheço no mundo um único caso que se lhe pode (contra)pôr a esse nível: a nosssa cidade de Fátima... (Também desde os anos 30. Com desfavor para a nossa, quanto aos pedintes... As inglesas Xangai e Hong-Kong, estratégicos centros de comércio marítimo, não valem.) Diz-me o caro leitor que Las Vegas está cheia de chulos, mafiosos, drogados, e altas taxas de suicídio? – Pois estará, mas eu falava de economia, produtividade, crescimento económico; daquele “nível de vida” que atraiu à norte-América migrantes pobres de todo o mundo. Estava a citar o símbolo de uma evidência histórica: nos Estados Unidos o chamado liberalismo económico realizou melhor do que qualquer outro regime conhecido aquele ideal de transformar gente muito pobre o mais rapidamente possível em gente muito rica: civilmente rica de pão e circo; politicamente de poder imperial de intervenção “global”. Veremos o que pode fazer ainda a outra mão, a que segura a Bíblia.

A tecnocracia engenheira alimentada pelo capitalismo industrial não pode subsistir sem mexer na Natureza e no homem; sempre, é claro, em nome do “Progresso”. Em algumas das mais ricas e influentes universidades norte-americanas (incluindo esta novíssima e muito selecta) vão ganhando terreno os ideais de human enhancement (a velha eugenia galtoniana disfarçada com outro nome, que os nossos brasileiros já traduzem por “aperfeiçoamento humano”), promovidos pela propaganda tecnólatra do transhumanismo : o “super-soldado”, em desenvolvimento no MIT, é apenas um exemplo menor desse “aperfeiçoamento” humano que os filmes holywoodescos (género Terminator) vão popularizando para ambientar as massas consumidoras ao mundo que os “sábios” e os “chefes dos trabalhos industriais” lhes anda a preparar. (Outro exemplo, com outro público-alvo, é a campanha do ano passado na “prestigiada” revista Nature a favor da liberalização das drogas para aumentar a “perfomance” das funções “cognitivas” da consciência. ) Trata-se, enfim de mobilizar todas as converging technologies (nano-info-neuro-biotecnologias) para promover uma radical mutação da natureza humana e “redesenhar” ou “controlar” a “evolução”. As linhas mestras dessa pretensão convergem para já nisto: o esbatimento das fronteiras entre o humano e o computador; e o esbatimento das fronteiras entre o humano e outros animais. Nesta convergência táctica está incoada a grande divergência social, cultural e civilizacional do futuro: - entre o “sobrehumano” bionicamente integrado; e o velho sapiens, embrutecido, drogado, eutanizado (“ensinado a praticar a morte voluntária”...) e higienicamente cremado. Do lado de fora do paraíso tecnológico ficarão os rebeldes “selvagens” insubmissos, sobre alguns dos quais já andam hoje a experimentar armas ultrassónicas(sonic weapons)...

Com efeito, um “progresso” que se propõe assim reconfigurar completamente a fisiologia, a sociologia e a ecologia da existência humana na Terra, não se faz sem perigos de sobressaltos e desordens. E é aqui que entra a outra palavra de ordem do positivismo tecnocientífico, lançada por Auguste Comte: - a “Ordem”. Foi já em 1969 que o neurofisiologista espanhol José M. R. Delgado, então a trabalhar nos Estados Unidos (com o Office of Naval Research , não com a CIA, como ele faz questão de dizer) lançou o livro programático: Para uma Sociedade Psicocivilizada. Psicocivilizada como ? – Bem, pelos velhos meios psicológicos já preconizados pelo sr. Burrhus Skinner e modernizados por Delgado et alli: radiocontrolo e drogas de recreação e anti-depressão. O feixe destes meios convergindo com o feixe das converging technologies, forma a armação totalitária do novo Fascismo para o condomínio do mundo pelo consórcio de três Impérios, comparativamente ao qual os arcaicos totalitarismos do séc. XX hão-de parecer... “humanos, demasiado humanos”.

É uma das ironias da História que “Ordem” e “Progresso” sejam as palavras impressas na insígnia oficial de um Estado cuja nação é visceralmente anti-positivista. Pois dar-se-á o caso de ser o Brasil lusíada (e restante América latina, com África e Índia) que, de hoje a algum tempo (alguns séculos...) virá a adiantar-se na solução do problema posto em Las Vegas a um mundo parcialmente desertado de humanidade ? Por mim, que não acredito em fatalidade nenhuma, ainda conto com a variedade e vitalidade da intervenção cívica de muitas e muito boas associações da sociedade civil dos grandes Estados Unidos norte-americanos. Mas o que eu sei é que, nas mind wars que cada um de nós terá de se travar no coração de cada qual, serei sempre do lado dos selvagens e pedintes que antes pedem e apostam em Fátima.


[ Não ignoro a bem sucedida luta do FBI contra a influência da Máfia em Las Vegas, grandemente diminuída e que parece hoje residual. Também não ignoro que instituições como o Las Vegas Springs Preserve e o Desert Living Center são hoje modelos e escolas exemplares de ecopreservação para muitas outras cidades nos Estados Unidos. Mas o leitor bem entendeu que não se trata neste postal de assuntos de urbanismo e de sociologia urbana.

Em baixo, uma imagem do “templo” positivista do Rio de Janeiro, o único no mundo construído de acordo com todas as especificações do sumo pontífice Auguste Comte. A semelhança com o estilo Panteão romano e o neoclassicismo doutras edificações politicamente emblemáticas, a oeste e a leste, não é coincidência, mas sinal: - do programa de renascimento do ethos colectivista e esclavagista da velha Polis pré-cristã.

Para além da “Ordem” e do “Progresso”, é legível no frontão a outra palavra-chave, omitida na bandeira do Brasil : não era preciso lembrá-la a brasileiros... ]





sexta-feira, outubro 08, 2010

SADE, NOSSO PRÓXIMO

Entre outras, uma questão básica pervade de fio a pavio toda a série de postais que aqui nos levaram da questão dos Direitos Humanos até à questão da existência ou não existência de Deus, e é: - Há no humano alguma coisa de excepcional e de único entre os mais seres vivos do mundo, e irredutível a este ?

As respostas disponíveis a esta (como a outras) questões fundamentais não são muitas. Toda a filosofia pré-cristã, ocidental como oriental, converge no sentido de considerar o humano nada de mais que um elo na “grande cadeia dos seres”, desde os deuses até à erva e à bolota, de que nos falava o sr. marquês de Sade. No Ocidente, uma resposta houve que logrou grande popularidade, até entre os que nunca ouviram falar na palavra “filosofia”: dizia Aristóteles que os humanos somos “animais racionais”; mas, é de notar que, no pensamento do filósofo grego, esta racionalidade não está de modo nenhum separada do que hoje chamamos “biologia”: a racionalidade é apenas a diferença que especifica o animal humano entre os outros animais. Posteriormente, a resposta aristotélica veio a integrar uma perspectiva diferente e inovadora, que adveio da cultura hebraico-cristã: existimos como seres vivos animais, sem dúvida, mas somos algo de mais e de diferente – imagem e semelhança de um Deus que transcende o mundo.

Eis como as duas concepções estão breve e sugestivamente contrapostas nestas palavras dum político, Lee Khan Yew, então ministro de Singapura, em entrevista de 24 de Abril de 1994 ao jornal Boston Globe: « Para nós, na Ásia, um indivíduo é uma formiga. Para vocês é um filho de Deus. »

Precisamente. Tal é a alternativa, e logo se vê as enormes consequências dela para todas as dimensões da nossa existência neste mundo, incluindo, como é evidente, o nosso assunto dos “direitos humanos”. É que, se não somos mais que “formigas”, não se vê nenhuma razão suficiente para substanciar qualquer preeminência de direitos para o homem relativamente aos demais seres vivos, animais ou, até, vegetais: e poderia suspeitar-se, com razão, de mera reivindicação “especista”, análoga ao etnocentrismo racista. A propósito da citação, e ao invés do que ele próprio dá a entender, quero sublinhar que não leio nas palavras do político asiático nenhum implícito “choque de culturas”, porque um qualquer citizen Kane norte-americano, olhando do alto dos soberbos “arranha-céus” veria com as suas lentes de vidro e aço apenas... “formigas”. De facto, tenho dúvidas que alguma vez a concepção cristã do humano haja sido existencialmente assimilada e substituído a pré-cristã na cultura “ocidental”. (Basta considar-se a atitude reaccinária da própria Igreja romana, secularmente comprometida com os negócios do Estado, aos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade; mesmo se compreensível no contexto da época, uma reacção infeliz, felizmene corrigida no séc.XX.)

Mas falta responder a uma correlativa e terminal questão, que não só o caso do”psicopata” sádico directamente põe; não só o sadomasoquismo, porque o sádico ainda tem uma preocupação (perversa) com o outro; mantém-se, portanto, ainda no horizonte duma relação pessoal, distintivamente humana (e por aqui pode compreender-se que uma relação sadomasoquista pode ser pessoalmente satisfatória para os interessados que a consentem). Mas, que dizer da indiferença ou inconsciência moral, em que não há a mínima preocupação com o outro? Pode e deve dizer-se desde logo isto: - que, num contexto social, em que a presença do outro é inevitável, a indiferença acomoda-se facilmente com a anulação e extermínio do outro, sobretudo se este representa algum real ou fictício incómodo para os desígnios do amoralista. Para este género de indivíduos, falhos de uma genuína relação inter-pessoal, matar outra pessoa custa-lhes tanto como... esmagar formigas. (Uma consciência tão moralmente débil ou informe que pode parecer indiferente, equivale na prática a um extremado egoísmo moral.)

E a nossa questão é: - como é que um sádico ou amoral homicida podem ser pessoas à imagem e semelhança de Deus, (e/ou) dignas de Direitos Humanos inalienáveis e absolutamente respeitáveis ? (Isto quando mesmo, no caso amoralista, é duvidoso poder falar-se de pessoas.)

Na concepção naturalista, não vejo resposta. Na sua versão mais benévola, o “respeito humano” traduz-se socialmente em “terapêutica”, “cuidados médicos”, “reeducação”, de acordo com o espírito de apartheid que lhe é inerente (a classe dos que se adaptam e sobrevivem; a classe dos que não e desaparecem): teríamos então a classe maioritária das pessoas “normais”, de um lado; e do outro, a minoritária dos “psicopatas”, excepções à norma, que é preciso tratar ou prevenir que prejudiquem os “sãos”. Mas, não só ainda não se descobriram as causas e os remédios, como nas sociedades sem códigos morais fortes (ou com diferentes e contraditórios, à escolha) parece proliferar o indiferentismo moral, a ponto de nalgumas já ser estatisticamente duvidoso falar de “excepções” a uma suposta regra. Em suma: não só não há resposta, mas o que temos é a erosão ou subversão daqueles esteios em que a maioria dos “normais”podia controlar ou defender-se dos patogénicos comportamentos nocivos ao grupo. (Adopto aqui, como notará o leitor, a tese naturalista de a moral e a religião não serem mais senão factores culturais coadjuvantes da selecção natural de um grupo ou espécie, em competição com outros.) Tal proliferação sugere que é pelo menos insuficiente procurar etiologias nos genes ou na bioquímica celular. (Que eu saiba, não há nada de “anómalo” na fisiologia do sádico ou do insensível moral.) Desesperada duma terapia viável, não admira que a concepção naturalista, em “instinto de defesa” do corpo social, possa recorrer a outros “tratamentos”: o extermínio selectivo, a eugenia...

Como tenho sugerido em precedentes postais, a alternativa resposta não naturalista mais eficaz é a que fundamenta os Direitos Humanos na dignidade da criação de todos os humanos à imagem e semelhança de um Deus-Homem. Mas o entendimento e a prática desta concepção dependem decisivamente do reconhecimento prévio duma situação:- não é natural, mas degenerada, a condição a que vimos, subsistimos e desaparecemos neste mundo. Uma condição de maneira nenhuma querida pelo Criador. Por isso, importa reconhecer o seguinte: - somos todos maus, estamos todos mal, todos precisados de reparação e tratamento. (Ver o que está clara e literalmente significado nas palavras de Jesus em Mateus 19, 17, Lucas 11, 13 e 18,19; e nas de Paulo Aos Romanos 3, 23.)

Nesta perspectiva não há apartheid nenhum: sadismo, indiferentismo, todas as “psicopatias” (como aliás todos as patologias do corpo moribundo desde a concepção), não são excepções a regra nenhuma, mas casos extremos, e sintomaticamente reveladores, da mesma universal condição humana neste mundo.

Não é preciso muita reflexão para cada um a sós consigo chegar à consideração humilde e realista da situação: pois, como o sádico, não é facto que cada um de nós já sentiu prazer com o mal? – e não é facto que mais facilmente propendemos a fazer o mal (que melhor sabe) do que o bem (que mais custa)? Por outro lado, se tanto o mal como o bem podem prazer ou doer, aqui temos nesta mesma confusão e dificuldade de discriminação a raiz dum possível indiferentismo (não falo agora duma deficiente ou nula educação moral); mas também do predominante investimento e final predomínio (amoral) da força da vontade indiferente a qualquer lei moral não coincidente como o mero interesse dos indivíduos ou grupos mais fortes. Esta indiferença pode ser, afinal, também o sinistro cabo a que vem dar a velha apatheia dos estóicos e dos mais que pretendem alçar-se “para além do bem e do mal”.

Depende de reparar-se e tratar-se esta situação o bem sucedido tratamento da questão dos Direitos Humanos universais. Depende de cada um, com seus próximos e com a ajuda de Deus; e creio dependerá também de tornar-se o “Cristianismo” menos aparente como uma “religião” ou uma (ocidental) forma de “cultura”, entre as mais, para revelar-se como o que sempre foi e é: único e verdadeiro remédio universal para a saúde-salvação da vulnerada natureza humana.



[ O título deste postal é uma evocação do título clássico de Pierre Klossowsky – Sade, Meu Próximo - , que teve tradução portuguesa de Ana Hatherly (1965).

Limitei-me aqui aos casos do sadismo e indiferentismo, mais que suficientes para o assunto. Mas cumpre advertir que há outro caso ainda mais problemático e talvez não inteiramente redutível ao amoralismo indiferente: o do risonho “ironista” que escarnece de qualquer seriedade neste género de assuntos. Esta atitude humanamente degradada e degradante interessa aqui apenas como mais um caso exemplar. O leitor dos meus postais sobre a Perversão da Lei Moral e o Mal Radical encontrará neles indícios sobre o que há por trás da máscara da troça e do riso. ]

Ver ainda:  http://toneldiogenes.blogspot.pt/2010/10/adenda.html

ADENDA

A concepção naturalista já a conhecemos, e é a mais fácil, espontânea e popular. A outra é mais complexa, e convém à razão seja bem entendida, antes de aceitada ou rejeitada. Fale-nos dela, em síntese, quem melhor a conhece:

« A imagem divina está presente em cada homem. Mas resplandece na comunhão das pessoas, à semelhança da união das pessoas divinas entre si.
Dotada de uma alma “espiritual e imortal” (GS 14), a pessoa humana é “a unica criada sobre a Terra querida por Deus por si mesma” (GS 24, §3). Desde que é concebida, é destinada à bem-aventurança eterna.
A pessoa humana participa da luz e da força do Espírito divino. Pela razão, é capaz de compreender a ordem das coisas, estabelecida pelo Criador. Pela vontade, é capaz de se orientar a si própria para o bem verdadeiro. E encontra a perfeição na “busca e amor da verdade e do bem” (GS 15, §2).
Em virtude da sua alma e das forças espirituais de inteligência e vontade, o homem é dotado de liberdade, “sinal privilegiado da imagem divina” (GS 17).
Por meio da razão, de que é dotado, o homem conhece a voz de Deus que o impele “ao amor do bem e à fuga do mal” (GS 16). Todos devem seguir esta lei, que se faz ouvir na consciência e se cumpre no amor de Deus e do próximo. O exercício da vida moral atesta a dignidade da pessoa.
“O homem, seduzido pelo Maligno, logo no começo da sua história abusou da sua liberdade” (GS 13, §1). Sucumbiu à tentação e cometeu o mal. Conserva o desejo do bem, mas a sua natureza está ferida pelo pecado original. O homem ficou com a inclinação para o mal e sujeito ao erro: “ O homem encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E, assim, toda a vida humana, quer singular quer colectiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas” (GS 13,§2).Pela sua Paixão, Cristo livrou-nos de Satanás e do pecado, e mereceu-nos a vida nova no Espírito Santo. A sua graça restaura o que o pecado tinha deteriorado em nós.
Quem crê em Cristo torna-se filho de Deus. (...)Mesmo depois de, pelo pecado, ter perdido a semelhança com Deus, o homem permanece como ser criado à imagem do seu Criador. »


Reagindo a esta concepção, exclamava com pitoresca acribia o nosso Raul Brandão, em certo passo do último volume das suas Memórias: « O que é extraordinário é que tenha havido um Deus capaz de nos amar até ao ponto de se deixar morrer por causa de semelhante macacaria.»(!) Já compreendemos melhor porquê: somos seres muito especiais os humanos; e tratava-se – e trata-se – de lhes dar os meios de recuperarem a semelhança com Deus, tornarem-se mais filhos de Deus que do macaco.


O leitor não deixou de notar no transcrito a referência à lei moral (“que se faz ouvir na consciência”), que “se cumpre no amor a Deus e ao próximo” – a Lei das leis, como cria e confessava o filósofo Kant. Uma referência apropriadamente sequente à liberdade.
Os trechos citados perpetuam uma Tradição mais ou menos lembrada em variáveis narrativas de muitos povos. É a chave para destrancar a inteligibilidade, a maior possível humanamente, do “problema do mal”. A desatenção ou escarninha desatenção dela (típica dos três últimos séculos da cultura ocidental) não tem feito mais do que agravar o problema: - « Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da acção social e da ética. »



[Citei os §§ 1702-1709 ; 2566 e 407 do Catecismo da Igreja Católica, aprovado e mandado publicar pelo papa João Paulo II no dia 11 de Outubro de 1992, no trigésimo aniversário do Concílio Vaticano II. Deste Concílio são citados trechos da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), aprovada no dia 7 de Dezembro de 1965. ]

quarta-feira, outubro 06, 2010

ANTÓNIO SÉRGIO: SOBRE A 1ª REPÚBLICA

« Em 1910 (5 de Outubro) abolia-se enfim a realeza. Fez-se então a verdadeira República ? Não se fez. Fora prematuro, sem dúvida alguma, o socialismo de Antero de Quental, pois que antes de revolucionar de uma maneira profunda o regime social da produção, é necessário possuir-se algum que produza com o mínimo de eficácia, e era isso o que faltava entre nós; a propaganda republicana, porém, surgira abstracta e atrasada, não somente em relação a Antero, mas em relação a um Herculano e um Garrett. Não passava de formalismo político (de simples negação, por assim dizer, da monarquia e do clericalismo), sem conteúdo concreto reformador na economia e na educação. Nem se aperfeiçoou a economia existente, nem se democratizou realmente nada. Nenhum dos factores de importância básica na vida económica e moral, como a propriedade, o crédito, a educação ou a assistência sofreu as reformas que se faziam mister segundo o espírito da democracia, nem se abriram campos de actividade útil ao trabalho agrícola e industrial (reforma agrária e da técnica agrícola; aproveitamento da água dos rios na rega dos campos e na energia eléctrica; democratização do sistema creditário; fomento e protecção das instituições económicas populares, etc. ), - reformas que favorecessem, enfim, a passagem do oligarquismo de Estado a um regime progressivo de que beneficiasse o povo. »

António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal ( in Obras Completas, 1972. A primeira edição, espanhola, saiu com o título História de Portugal, em 1929. )


No importante Prefácio da segunda edição do tomo I dos Ensaios, deste mesmo ano de 1929, justificando a sua posição pessoal de - “Democrata, mas antijacobino; anticlericalista, mas respeitador da religião” -, Sérgio diz mais isto sobre a 1ª República, e sobre a ocasião única que teve, quando da sua posse como ministro da Instrução, em 1923, para pôr em execução a reforma pedagógica por que de há anos pugnava. Ocasião única e, infelizmente, breve: durou dois meses...

« As reformas económicas, as de educação social (por cooperativas de trabalho, por self-government, etc.) afiguravam-se-me as bases da reformação política; e neguei-me a acreditar que o que realmente se impunha, para arrancarmos o nosso povo à sua situação de miséria, fosse o ataque jacobino à religião católica e a substituição dum monarca por um presidente eleito ( ... ). Nada nos republicanos me estarrecia tanto como o dizerem que a separação das Igrejas e do Estado era a base essencial da revolução portuguesa, o substancial da República. Fundamentais, pensava eu, só reformas económicas o poderiam ser, e as de pedagogia social que com o económico se relacionam. ( ... ) Mas o que julguei observar na nossa grei jacobina é que não tinha consciência desse imperativo económico, dessa busca da democracia no “viver positivo dos homens” (à excepção de um ou dois, de que se não fez caso algum), e que encarava a República como uma finalidade em si, como qualquer coisa de estática, de só formal, só político, propendendo a ficar-se na modificação dos nomes, e inconsciente de que o que via como fim da política só poderia justificar-se como simples meio, ou instrumento, para uma gradual aproximação deste genuíno objectivo: o objectivo da igualdade e da justiça económicas, o da gradual extinção das distinções de classes que se estribam na maneira como se auferem réditos. ( ... ) Disso, porém , não curaram nunca os caudilhos : e sempre me pareceu que os coriféus da República não davam tino da importância do condicionamento económico, e que não queriam perceber que sem remodelações económicas não existe realmente revolução autêntica, mas ruidoso espectáculo para celebrizar tribunos. ( ... )

Para mim a insurreição republicana de 1910 (mais, ainda, que a de 1820) nem um átomo nos dera do que realmente importava, e nunca me esquecia daquele dizer do Quental: “um jacobino é um conservador incoerente, com frases de demagogo”; nem do ditame de um Herculano: “Mantenham-me esta (a liberdade), e pouco me incomoda que outrem se assente num trono, numa poltrona ou numa tripeça” . ( ... )

Por outro lado, o espírito de certos membros do nosso pessoal da política viria eu conhecê-lo uma dúzia de anos mais tarde, quando muito de propósito esses senhores me estorvaram (à força de tramóias, de calúnias, de maquinações, de rasteiras, de vinganças de maus interesses que se viam por mim ameaçados, ou pelo meu amigo Azevedo Gomes, então ministro da Agricultura) em tudo o que tentei para melhorar a Instrução. Aliás pouco tempo se passou sobre essa história triste quando de todo se passou o que eu declarara na Câmara, num dia em que um bando me saiu à frente, por amor (diziam eles) da República: que havia republicanos das horas difíceis e republicanos das horas de regabofe, estando acaso entre os últimos aqueles que ali me atacavam e os que se tinha-me esquivado a participar do governo no momento de responsabilidade por que se então passava. Com efeito, a nenhum de tais homens os vi depois aparecerem, nas horas difíceis do exílio, da prisão, do degredo, com a mesma preocupação de defender sua Dama. »

terça-feira, outubro 05, 2010

António de Pádua Pregando aos Peixes, Gustav Mahler



Andando às voltas com o "Sermão de Santo António", de Vieira, encontrei este Lied ligeirinho e sarcástico de Mahler.






sábado, outubro 02, 2010

CAMILO CASTELO BRANCO

CAMILO CASTELO BRANCO


« O homem, pois, que muito sofre, e não se furta às dores aniquilando-se, é a continuação do Filho de Deus sobre a terra; é porventura o eterno Cristo expiando a primeira culpa do tronco verminoso da humanidade.» (1854)

« Lamentai o suicida, porque a sua última hora foi uma luta horrível entre a deseperação, a incerteza e, talvez, a saudade. » (1857)

« Se a alma do suicida pudesse subir à presença de Deus, a Divina Majestade esconderia a face envergonhada ou condoída da sua; porque o suicida lhe diria como Job: Porque me tiraste do ventre materno ? « (1888)

« A mulher que de tão longe o saúda, tem também uma história de lágrimas .... Quinze anos vivi numa Fazenda no Sertão; uma amiga que sabia das minhas amarguras, emprestou-me as obras de Camilo Castelo Branco, que me foram a distracção e consolação única nos longos e deseperados dias de quinze anos. » (Uma leitora brasileira, 1881. )

« O homem, que escurece a vista curvado sobre a banca do estudo, aprofundando a ciência e os mistérios do coração humano, à procura do bálsamo para chagas inumeráveis, afigura-se-me suspenso à terra por um fio divino: tão perto o vejo revoar dos segredos de Deus. » (Ana Plácido)
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Um bom conhecedor de Camilo, João Bigotte Chorão, lamentava a hodierna falta de uma antologia de textos selectos que servisse de introdução camiliana para a mocidade estudiosa. Isto era bom se os novos tivessem interesse em estudar, e os superiores responsáveis do sistema público educativo tivessem interesse em que eles aprendessem com os velhos que melhor cultivaram a Língua Portuguesa. ( A pressa e o empenho é que as crianças, ainda balbuciando mal assimilados rudimentos da língua materna, comecem desde logo com o Inglês...)

Se já foram feitas em tempos algumas boas antologias, não sei eu de jamais haverem sido compilados os prefácios de Camilo aos seus livros, de não menor importância para o conhecimento do Autor das muitas “refolhudas glossas” (diz o próprio) que a cada página “enfronham” a tessitura dos seus contos. Os seus contos!... O primeiro que teve sucesso popular foi um dramalhão em forma de folheto de cordel – Maria, não me mates que sou tua Mãe! -, e o Autor, condenado a (quase) só viver do que escrevia, tão sensível como era às solicitações do mercado, logo viu o furo e aproveitou o filão, que explorou até ao fim da atribulada carreira de “grilheta da pena”. Mas não esqueçamos, além da vastíssima e enxundiosa (permita-se-me o adjectivo camiliano) obra do ensaísta histórico e do crítico literário, que Camilo começou e continuou por toda a vida escrevendo versos, sendo de poesia o seu último livro publicado (para o qual lhe foi difícil achar editor!). Ora acontece comigo, que sou pouco lido em romances e sem paciência para intrigalhadas de faca e alguidar, ainda hoje caírem-me os olhos na primeira página dalguma novela camiliana e não sou capaz de me despegar até à última linha, pelo meio ora rindo à gargalhada num página aqui, ora chorando de comovida pena umas poucas páginas adiante. Tal é o engenho e a arte deste prodigioso artífice da palavra e dos sentimentos. Mas o que mais interessa e empolga é o caso humano de como no século de oitocentos, totalmente aberto, permeado e lucidamente informado da cultura do seu século, se debateu um certo tipo de português com os problemas humanos de sempre. É a partir desta perspectiva que me parece o leitor pode inteirar-se melhor da soberana excelência do Artista, tanto como das indigências e insuficiências que afectaram o homem e... na mesma nos afectam a nós, portugueses de hoje. (Mesmo que tão aparentemente demudados pelo grande traumatismo que temos padecido nos últimos decénios.)

Este homem das dores foi um mestre consumado da comicidade, desde a ironia mais subtil ao sarcasmo mais grosseiro e desbragado de respeitos humanos. Na linha média da escala parece-me estar o puro humor dos dois primeiros trechos que sirvo em baixo ao leitor, e nos falam doutras lutas mais inofensivas. Não era a primeira vez que Camilo se havia com a bicheza hospedada à conta da falta de higiene numas lôbregas hospedarias, das quais já Vernei, em setecentos, falava com horrorizado anojo nas Cartas Italianas. Desta feita foi no sítio de Baltar, passando de Vila Real para o Porto, em Vinte Horas de Liteira (1864) e de saborosas histórias que ia trocando com um amigo e companheiro de viagem... –