sexta-feira, março 31, 2006

Roberto Nobre e a sua amizade com Ferreira de Castro


Transcrevo (com autorização da autora) um excerto de um texto de Filipa Palma (que em 2003 era aluna do 11º ano da E. S. de São Brás de Alportel) sobre o tema em epígrafe. O texto completo encontra-se no livrinho Roberto Nobre: Fragmentos de um Legado.


“Roberto Nobre e Ferreira de Castro eram dois tecelões de sonhos literários e artísticos, sonhos que se ligavam aos seus anseios de fraternidade e justiça. Segundo Ferreira de Castro, foram companheiros nas alegrias e nas dores e só no fim das suas vidas os elos que os uniam se quebraram. Afirmou o autor de A Selva que, com o desaparecimento de Nobre, alguma coisa morrera dentro nele para sempre.

Ferreira de Castro vivia então da escrita que produzia para diversas publicações. Quando Nobre chegou a Lisboa, Castro solidarizou-se com ele e pediu aos directores dos jornais para encarregarem o jovem sambrasense das ilustrações dos seus trabalhos. Mas a ligação entre os dois prolongava-se para lá do trabalho. Todas as noites Ferreira de Castro e Roberto Nobre se reuniam com Assis Esperança numa pastelaria da Avenida da Liberdade, quando esta estava deserta. No verão sentavam-se ao ar livre, à mesa de uma esplanada de raros clientes onde pouco dinheiro despendiam. Em conjunto sonhavam não apenas com o seu futuro artístico, mas também com uma sociedade justa para todos os homens. Além disso, noite após noite, com uma persistência elevada, Nobre decorou o pequeno gabinete de trabalho que Ferreira de Castro tinha na Rua do Diário de Notícias, no número 44. […]

Roberto Nobre teve então um casamento precoce que dificultou ainda mais a sua vida. Assim empenhou-se arduamente, redobrou os seus esforços quotidianos, trabalhando desesperadamente em várias revistas que a Bertrand publicava na altura. […]

Algum tempo depois, o lar de Nobre desmoronou-se e ele voltou ao convívio antigo com Ferreira de Castro. Ilustrou, então, um livro de Ferreira de Castro intitulado Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, como já dez anos antes havia ilustrado a Epopeia do Trabalho. Mas com o passar do tempo a actividade de ilustrador foi dando lugar à de ensaísta, que se tornou dominante. À crítica de cinema juntou a de artes plásticas, onde, segundo Ferreira de Castro, triunfou também. […]”

Ricardo António Alves editou e publicou o livro: Ferreira de Castro e Roberto Nobre: Correspondência, 1922-1969, Lisboa, C. M. de Sintra, 1994. Na fotografia estão, claro está!, os dois artistas. Desconheço quem foi o autor da foto.

Caro Xor D

Já que ninguém critica o que digo vou eu encetar aqui uma réplica a algumas das suas afirmações produzidas no blogcafé. De barrica para cafetaria, aí vai. Quer isto dizer que eu levo a aguardente (vou fazer o possível com que seja velha, ou mesmo velhíssima) e você serve o café.
Considerações estas que se prendem com algumas das afirmações que tem feito a propósito da expulsão dos emigrantes do Canadá. Se bem se lembra a primeira observação que lhe fiz ia no sentido do tempo de permanência de alguns destes portugueses no Canadá (10, 15 anos, se fizermos fé em alguns testemunhos) e, o facto, no mínimo estranho, de ser demasiado tempo para uma permanência ilegal, se bem me lembro (como dizia o saudoso Vitorino Nemésio no Mau Tempo no Canal) lhe falei, em tom de brincadeira, de usucapião ou como popularmente se diz, uso campeão.
Deixe-me que lhe diga se não lhe faz lembrar a situação dos professores provisórios? Estes andavam no “limbo” durante anos e anos e um belo dia o desemprego podia ser o resultado. Haverá certamente outras situações idênticas.
Não discuto, por razões óbvias, a intervenção dos media e a diferença de tratamento em relação aos “nossos emigrantes ilegais”. Aí acertou na “mouche”.
Mas, por outro lado, o argumento dos “telhados de vidro” acarreta uma outra consequência que fica implícita, a saber, se erramos não nos podemos queixar dos que erram. Ora bem, o erro não justifica o erro, ou por outras palavras, nada justifica o erro a não ser a sua correcção. Entrando nessa linha de raciocínio, por redução ao absurdo, pode-se abrir a porta ao sistema da “vindicta”, o que certamente não deseja, e daquilo em que, numa imagem arrojada, eu apelido, metaforicamente falando (ou escrevendo), a política externa de Israel.
É verdade que o seu argumento principal não sofre qualquer beliscadura e ainda bem pois é uma constatação que, de uma forma ou outra, devia ver a luz do dia.

quinta-feira, março 30, 2006

Roberto Nobre, artista plástico (III)


Acho fabuloso este retrato a lápis que Roberto Nobre fez do seu amigo e colega (na Singer), o escritor Assis Esperança (1892-1975). É interessante como, através a escolha da perspectiva, da gravidade do rosto, das marcas firmes do traço, dos sombreados e da presença do monóculo, o desenhador procura fabricar não só um estado de alma, mas uma personalidade para o retratado. (Mais havia para dizer.)
Como acontece com a obra de Roberto Nobre, também a de Assis Esperança, de orientação neo-realista, permanece no esquecimento.

quarta-feira, março 29, 2006

Roberto Nobre, artista plástico (II)



Esta ilustração mostra outra vertente da obra plástica de Roberto Nobre. Já não temos a imagem estilizada que encontrámos em Salomé, mas antes uma imagem na linha do Naturalismo ou, talvez melhor, do Realismo Social (seu contemporâneo) nas artes plásticas. Vou confirmar se esta é uma das ilustrações que Nobre produziu para a obra A Epopeia do Trabalho, de Ferreira de Castro. (A imagem é uma cortesia do Museu Arqueológico Lapidar "Infante D. Henrique", de Faro.)

terça-feira, março 28, 2006

Truth hurts!

Cito esta informação colhida no Esplanar:

"Margarida Rebelo Pinto e Oficina do Livro requerem contra João Pedro George e Objecto Cardíaco uma providência cautelar não especificada com a finalidade de impedir a distribuição e venda da obra Couves & Alforrecas: Os Segredos da Escrita de Margarida Rebelo Pinto. Passa-se isto a um mês das comemorações do 25 de Abril de 1974."

Roberto Nobre, artista plástico



Deslumbro-me com esta Salomé, de Roberto Nobre, que mostra, a meu ver, o talento e o gosto estético do artista. O mais curioso é que, sendo Nobre um adepto e um cultor de uma estética próxima de um Realismo Social (note-se que fujo ao termo "Neo-realismo"), revela a sua versatilidade ao produzir também ilustrações de orientação esteta ou decadentista, próxima da "arte pela arte".
Embora esta imagem seja colorida, creio que podemos aqui encontrar influências das gravuras de Aubrey Beardsley. Digo "creio", porque não posso atestar que Nobre conhecesse a obra de Beardsley; mas é muito improvável que nunca tivesse visto as ilustrações do artista inglês, que também retratou Salomé. A concepção teatral da composição, a representação bidimensional das figuras e as linhas cor de sangue de índole "expressionista" ("expressionista" porque se trata de uma representação filtrada pela subjectividade do artista, que desafia a representação mimética do real) são três traços que evocam a poética de Beardsley.

(A imagem é uma cortesia do Museu Arqueológico Lapidar "Infante D. Henrique", Faro.)

Vladimir, o comunismo e os pecados mortais

Wladimiro Guadagno, alias, Vladimir Luxuria, travesti, comunista, futuro deputado e homónimo de Lenine vai se tornar o primeiro transgénero, sirvo-me da expressão porque ele se auto-denomina assim por não ser operado, deputado. Integrado como cabeça de lista do Partido Refundação Comunista às eleições que se vão disputar a 9 de Abril em Itália e, como se depreende, com largas hipóteses de ser eleito. Estas informações são recolhidas da peça que a edição de sábado do Público (25/3/2006) fornece.
A notícia valeria o que vale se a esta não fossem adicionados preciosos comentários dos quais me permitem pôr em relevo os seguintes:
Alexandra Mussolini, neta desse preclaro democrata que governou a Itália na primeira metade do século XX, asseverou que era “melhor ser fascista que maricas”. Destas palavras apenas podemos depreender que a descendente do Duce preferia que o candidato fosse fascista comunista em vez de maricas comunista. Ou será que pior ainda seria maricas fascista já que comunista e maricas é o seu estado actual.
Por outro lado, o líder de um pequeno partido católico (do qual, infelizmente, não nos é fornecida a nomenclatura) atesta que Luxúria é uma “Cicciolina ridícula”. Ora daqui só se pode inferir que: em primeiro lugar, a Cicciolina é homossexual e, em segundo lugar, não é ridícula. O homem será um adepto da ex-deputada e deusa do sexo? Sabemos que Cristo deve ter dito “crescei e multiplicai-vos” mas também temos de fonte segura que não lançou qualquer anátema contra os que crescem e não se multiplicam.
Por vezes tenho a sensação que é gente desta que, no caso das caricaturas de Maomé, defende a “liberdade de expressão”: Não foi um alto dirigente da Liga do Norte, partido italiano de direita, que mandou estampar as caricaturas em t-shirts?
Em resumo, a grande novidade não será a entrada, de forma ostensiva, de mais um pecado mortal num parlamento, talvez um que dele andava arrediço. Tenho de reconhecer que depois disto haverá gente que me apelidará de anti-democrata para não dizer fascista.
Mudando de assunto, porque é que será que cada vez mais me parece que o modelo, no sentido platónico do termo, da imprensa em Portugal é o Correio da Manhã.

segunda-feira, março 27, 2006

103º aniversário do nascimento de Roberto Nobre: cronologia


Como complemento ao texto que publiquei no Blog Café, afixo aqui uma cronologia mínima da vida e da obra de Roberto Nobre.
1903 – Nasce a 27 de Março, em São Brás de Alportel, José Roberto Dias Nobre.

1919-1920 – Colabora no periódico Alma Lusitana de Faro.

1920 – Funda no Algarve, juntamente com outros amantes do cinema, uma produtora cinematográfica de parcos meios financeiros: a Gharb-Film

1922 – Conhece Ferreira de Castro, iniciando com este uma forte e duradoura amizade.

1923 – Expõe em Lisboa, pela primeira vez, os seus quadros numa mostra partilhada com Isaura Cavalheiro.

1925 – Elabora ilustrações para os periódicos Batalha e ABC.

1926 – No dia 28 de Maio, Salazar sobe ao poder, dando início ao regime totalitário a que Nobre se opôs durante toda a sua vida.

– Nobre fixa-se em Lisboa e emprega-se na empresa Singer, onde trabalhou no domínio da publicidade.

– Colabora como ilustrador na revista Civilização, fundada por Ferreira de Castro.

1934 – Começa a publicar ensaios sobre cinema no jornal O Diabo.

1937 – Ilustra a edição de Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, de Ferreira de Castro

1938 – Ilustra A Selva de Ferreira de Castro.

1939 – Publica Horizontes do Cinema, que ainda hoje é uma obra de referência dos estudos cinematográficos em Portugal.

1940 – Por questões ideológicas, recusa um convite “generoso” para participar na Exposição do Mundo Português, o que lhe valerá a antipatia do Estado Novo.

1946 – Publica O Fundo – Comentários ao Projecto da Nova Política de Cinema em Portugal, texto apreendido pela Censura do Regime.

1964 – Publica na Portugália a obra Singularidades do Cinema Português.

1969 – Morre em Lisboa, a 27 de Setembro.

1972 – É publicada postumamente a obra Cervantes ou Ontem e Hoje com Dom Quixote.

domingo, março 26, 2006

Vale de Almeida, o PS e o PSOE

Miguel Vale de Almeida, antopólogo e ex-dirigente do Bloco de Esquerda (ok, o Bloco não tem dirigentes...), escreveu no seu blogue e disse ao Expresso que já não era militante do partido. No semanário, propôs uma tese que não me parece viável. Segundo MVA, o BE podia exercer sobre o PS uma pressão que levasse este a aproximar-se da orientação política do PSOE. Não creio. Isto porque, apesar de o BE ter vindo a crescer, o PS têm-se tornado mais um partido colado à "terceira via", à orientação Realpolitik (i.e., do pragmatismo político e não dos valores), em suma, à direita, e não faz tenção de corrigir o rumo. (Veja-se a atitude de "é a vida" como este governo olha o Estado, a economia e as causas sociais.)
O crescimento do Bloco acompanhou o crescimento do PS sem o influenciar politicamente, para grande pena minha. Aliás, creio que os 20% de votos em Alegre revelam que, após as eleições legislativas, os simpatizantes do PS de esquerda não se revêm no PS de Sócrates. Trata-se de 20% dos vontantes que hesitarão muito em quem escolher nas próximas eleições.
Sim, gostava que o PS se afinasse ideologicamente pelo diapasão do PSOE, mas, helas!, são os Trabalhistas ingleses e os Democratas americanos que lhe servem de modelo.

sábado, março 25, 2006

Saudações ao novo confrade

Escrevo este blogue para saudar a entrada do Xôr Z no grupo de escribas deste blogue. Seja bem vindo! Desejo-lhe inspiração, verve e acidez para quando necessário. No seu primeiro post, o Xôr Z já deu um ar do que é capaz. Comecem a habituar-se.

Quanto a eu ser o seu empregador, caro Z, está o meu amigo equivocado. Não leu o texto até ao fim quando assinou o contrato laboral? Isto aqui é uma cooperativa. Mas não como a cooperativa do Otelo. Na nossa, os “cooperantes” têm quotas iguais. Como o Alberto e como eu, o Xôr Z detém 33,3% do capital e dos lucros. Está bem assim?

Autocrítica

Estando em amena cavaqueira com amigos confessava que tinha andado a aceder a um blog chamado Tonel de Diógenes, aquele o discípulo de Antístenes, o cão, que andava pelas ruas de Sínope de lanterna em punho. Achando eu que o termo Tonel era demasiado ostensivo para qualificar um blog dedicado a uma escola que fugia de todo o luxo e "mundanidade" (passo a expressão) atestava que seria incapaz de participar nesse sítio (a expressão que usei foi outra que não quero aqui reproduzir por pudícia) enquanto ele não se rebaptizasse de Barrica (ou Barril) de Diógenes, expressão que me parecia mais consentânea com a austeridade do citado blog. Qual foi portanto o meu espanto quando o Alexandre (que, como sabem, é a entidade patronal, os meus respeitos para ele que com o novo Código de Trabalho todo o cuidado é pouco) me convidou a fazer parte dos escribas. Encontrava-me eu num dilema idêntico ao da sentinela, que durante a noite, deixou penetrar o inimigo nas muralhas da cidade: se estivesse acordada, não devia ter deixado entrar o inimigo e como ele penetrou as muralhas o castigo era certo, se, por outro lado, estava a dormir, então devia ser castigada por não estar no seu posto, coitada da sentinela era emprego que eu não ambicionava. Ainda me ocorreu a ideia de que o Lula também tinha sido operário mas, digo-o com pena, podiam lembrar-me que hoje é o sumo obreiro da nação e, por essa razão, resolvi remeter-me ao silêncio.
Porém, com muito maior peso do que a razão atrás enunciada estava o facto de me ter jactado de gostar unicamente de comentar aquilo que os outros escreviam, tarefa mais cómoda e que desempenhei, com alguma intermitência, neste tonel e no blogcafe e, não contente com o facto, fazia alarde de um dia me tornar um comentador tão famoso como o Nuno Rogeiro ou o Marcelo Rebelo de Sousa (embora, devo dizer à puridade, seja incapaz de comentar o ténis, o golf, o jogo do botão e a corrida das caricas). E, devo penitenciar-me, esta razão calava fundo, tão fundo que o resultado teria que ser este texto que, à falta de melhor designação, intitulei de autocrítica mas que melhor poderia ser denominado autoexpiação.

sexta-feira, março 24, 2006

Os animais e a poesia: o mosquito


O mosquito

O mundo é tão esquisito:
Tem mosquito.

Por que, mosquito, por que
Eu . . . e você?

Você é o inseto
Mais indiscreto
Da Criação
Tocando fino
Seu violino
Na escuridão.

Tudo de mau
Você reúne
Mosquito pau
Que morde e zune.

Você gostaria
De passar o dia
Numa serraria —
Gostaria?

Pois você parece uma serraria!


Vinicius de Moraes

Os animais e a poesia: o porco


THE PIG

The pig, if I am not mistaken,
Supplies us sausage, ham, and bacon.
Let others say his heart is big –
I call it stupid of the pig.

Um poema do anti-semita Ogden Nash, retirado de uma antologia de poesia para crinaças e jovens intitulada The Rattle Bag, organizada por Seamus Heaney e Ted Hughes (Londres e Boston, Faber and Faber, 1982).

figuras e petulâncias II

Uma aliteração sugestiva (não, não é uma uma assonância porque uma semi-vogal conta como consoante):

"The wild waves whist." (Shakespeare)

figuras e petulâncias I

Retenho uma metáfora poderosa (os retóricos puristas dir-me-ão que se trata de um animismo, ok!):

"She came on the wings of a storm." (A. S. Byatt)

quarta-feira, março 22, 2006

Sabes para que servem estes dentes tão grandes, Capuchinho...?


The Little Girl and the Wolf, by James Thurber

One afternoon a big wolf waited in a dark forest for a little girl to come along carrying a basket of food to her grandmother. Finally a little girl did come along and she was carrying a basket of food. "Are you carrying that basket to your grandmother?" asked the wolf. The little girl said yes, she was. So the wolf asked her where her grandmother lived and the little girl told him and he disappeared into the wood.

When the little girl opened the door of her grandmother's house she saw that there was somebody in bed with a nightcap and nightgown on. She had approached no nearer than twenty-five feet from the bed when she saw that it was not her grandmother but the wolf, for even in a nightcap a wolf does not look any more like your grandmother than the Metro-Goldwyn lion looks like Calvin Coolidge. So the little girl took an automatic out of her basket and shot the wolf dead.

(Moral: It is not so easy to fool little girls nowadays as it used to be.)
James Thurber, “The Little Girl and the Wolf”, in The secret life of Walter Mitty and other pieces, Harmondsworth, Penguin Books, 2000 [1947].
Fotografia de Monica Bellucci, gamada ao blogue E Deus Criou a Mulher. (Vamos lá ver se subimos no ranking... Eh eh eh!)

'Como se chega a rei da banca'


Quer saber como se chega a rei da banca? Venha falar com a Opus.

terça-feira, março 21, 2006

Porque hoje é o dia mundial da Poesia... (II)

Abriste lentamente o roupão,
como uma garça espraia as suas asas,
para deixares voar a tua sensualidade.

Porque hoje é o dia mundial da Poesia...

Porque Mário Cesariny é um dos meus poetas de eleição...

PASTELARIA - MÁRIO CESARINY

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante -
ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra


Nobilíssima Visão (1945-1946)

segunda-feira, março 20, 2006

A Poesia por um mundo mais humano




Urgentemente


É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.


Eugénio de Andrade

O quadro intitula-se Christina's World, é de Andrew Wyeth (1948, óleo sobre tela, MoMA).

domingo, março 19, 2006

Diógenes e a 'diogenia' como atitude de vida

Resolvi desenterrar um excerpto da Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós, onde podemos encontrar um antepassado do Diógenes deste blogue (o Diógenes do blogue não sou eu nem é o Alberto, embora seja um pouco de ambos). O rasgo queirosiano é memorável e vale mesmo a pena saboreá-lo. Neste excerto, o narrador da primeira parte da obra vai com um amigo, Teixeira de Azevedo (o nosso Diógenes), visitar Fradique.
"Fomos ambos ao Central, dias depois, no fundo de uma tipóia. Eu, engravatado em cetim, de gardénia ao peito. J. Teixeira de Azevedo, caracterizado de «Diógenes do século XIX», com um pavoroso cacete ponteado de ferro, chapéu braguês orlado de sebo, jaquetão encardido e remendado que lhe emprestara o criado; e grossos tamancos rurais!... Tudo isto arranjado com trabalho, com despesa, com intenso nojo, só para horrorizar Fradique – e diante desse homem de cepticismo e de luxo, altivamente afirmar, como democrata e como idealista, a grandeza moral do remendo do a filosófica austeridade da nódoa! Éramos assim em 1867!
(Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes, ed. Helena Cidade Moura, Lisboa, Livros do Brasil, 1999[1900], p. 32.)

'Joseph Beuys' de Nam June Paik


Com atraso, devido a problemas informáticos, afixo agora o "retrato" de Beuys feito por Nam June Paik, de que tinha falado no Blog Café.

quinta-feira, março 16, 2006

Helder do Amaral, deputado do PP

Vi claramente visto... um africano (bem africano) na bancada do PP. Mais, o partido de Portas até o pôs a falar sobre a política da saúde. Tratava-se de Helder do Amaral, um técnico de turismo de 38 anos com o curso de Direito deixado a meio (ficou-se pelo 3º ano).
Antes que me acusem de racismo, digo já, COM MÁXIMA SINCERIDADE, que acho muito útil haver africanos no Parlamento e que me parece inadmissível que os partidos políticos não coloquem em lugares elegíveis cidadãos das minorias étnicas (que saudades tenho de ver o Fernando Ka na AR!). Como as coisas estão, a Assembleia não pode alegar que representa os interesses de todos os portugueses se não tem entre os deputados elementos de grupos étnicos e religiosos com grande expressão na sociedade. Os deputados, caucasianos e católicos (ou agnósticos), não podem presumir que conhecem as realidade das populações africana, judaica, cigana, de emigrantes de leste (etc.) que vivem em Portugal.
Volto ao deputado Helder do Amaral para dizer o óbvio. O parlamentar foi colocado por uma questão de marketing político (não terá sido pela sua competência técnica, visto que o curso de Direito ficou a meio). A direita tem destas coisas e o exemplo veio do governo conservador de Bush, que tinha Powell e agora tem Condoleezza Rice. É a direita no seu melhor, a atirar-nos areia para os olhos. Não conheço o deputado Hélder do Amaral. Mas se ele lá estivesse para defender os direitos dos "afro-portugueses" (que bem necessitavam de ser defendidos), não era na bancada do PP que se sentava.
Uma colega africana explicou-me que os africanos têem um rótulo para classificar aqueles que são "pretos" por fora e brancos por dentro (i.e., que viram as costas à sua africanidade quando se integram na sociedade branca). A esses chamam eles os Bounty.

quarta-feira, março 15, 2006

Porque hoje é o dia do consumidor...


A "obra" intitula-se Protect me from what I want e é da autoria de Jenny Holzer. Apresentei outra versão da "peça" no Blog Café.

O atelier de Francis Bacon


Esta é uma fotografia da oficina, desculpem, do atelier (que é mais fino) de Francis Bacon. Ocorreu-me, ao vê-la, uma frase inglesa que legitima sempre a desarrumação da minha secretária (... a de madeira.): "A clean desk is a sign of misguided career". Vou traduzir muuuuito livremente esta frase: uma secretária bem arrumadinha é sinal de que o "artista" não se empenha a fundo.
Chamo a atenção dos leitores para a "fa-bu-lo-sa" fotografia da biblioteca da sinagoga portuguesa de Amesterdão que JPP publicou no Abrupto no dia 13 deste mês.

Há dias em que um gajo se sente assim...

"Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura".

terça-feira, março 14, 2006

Mais cidadania, mais reflexão crítica e mais cultura nas Escolas

Muitos professores lamentam a falta de ambição cultural, pedagógica e cívica dos programas do Ministério da Educação e dos manuais. Foi este o sentimento que levou um grupo de cinco professores/investigadores a embarcar num projecto que visa desenvolver uma abordagem do ensino das línguas em que se valorizam os conhecimentos culturais e se promove a reflexão crítica sobre questões da cidadania. Com este propósito, recorre-se também à arte (literatura, pintura, fotografia artística, etc.) como meio para levar os alunos a alargar os seus conhecimentos, a trabalhar as suas competências e a pensar a realidade contemporânea (e histórica). Esta é uma proposta no sentido de pôr a Escola a contribuir mais directa e enfaticamente para a formação dos cidadãos de amanhã e para a elevação intelectual das futuras gerações.

A descrição e os resultados do projecto Língua, Arte, Cidadania encontravam-se num site obscuro e de difícil acesso. A equipa coordenadora do projecto (de que faço parte) resolveu disponibilizar esses dados numa página em forma de blogue para facilitar a divulgação da iniciativa. (Para aceder ao site com a descrição do projecto, clique aqui.)

Como os Americanos vêem o mundo (outra versão)

domingo, março 12, 2006

O humor dos poetas barrocos

O poema que se segue é do poeta barroco D. Tomás de Noronha. Quem disse que tudo no Barroco era morte, pó, tempo a fugir e fragilidade da condição humana?


Pragas se chorar mais por uma dama cruel

Não sossegue eu mais que um bonifrate,
De urina sobre mim se vase um pote,
As galas que eu vestir sejam picote,
Com sede me dêem água em açafate,

Se jogar o xadrez, me dêem mate,
E jogando às trezentas, um capote,
Faltem-me consoantes para um mote,
E sem o ser me tenham por orate,

Os licores que beba sejam mornos,
Os manjares que coma sejam frios,
Não passeie mais rua que a dos fornos,

E para minhas chagas faltem fios,
Na cabeça por plumas traga cornos,
Se os meus olhos por ti mais forem rios.

D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V

(Recomendo a leitura do livro de Abel Barros Batista e Gustavo Rubim, Importa-se de me emprestar o Barroco?, Lisboa, Cotovia, 2003.)

sexta-feira, março 10, 2006

Dois pesos, duas medidas... e uma lata do caraças!


A administração americana publicou os seus relatórios anuais sobre as “práticas dos direitos humanos” noutros países; isto é, nos Estados que o americanos consideram “não civilizados”... que são todos os Estados do mundo à excepção dos próprios EUA. Escusado será dizer o que todos já sabem: a administração americana não revela os seus próprios relatórios sobre os desrespeito pelos Direitos Humanos cometidos pelas autoridades no seu território ou no estrangeiro. (Digo que não revelam os relatórios porque obviamente eles existem.)
Mais do que os relatórios em si, é o acto de redigir e publicar avaliações sobre o respeito ou o desrespeito dos restantes países pelos Direitos Humanos e é o gesto de consagrar essas avaliações como a referência número um sobre o assunto que se revelam inacreditáveis, inaceitáveis, inconcebíveis, imperdoáveis quando sabemos que os Direitos Humanos são diariamente atropelados grosseiramente pela Administração e pelas restantes autoridades americanas. Sou da opinião que os media portugueses (melhor, os de todo o mundo) deveriam ignorar e não fazer qualquer alusão a tais documentos, que são, pela contradição que os mina, afrontosos para a Humanidade.
Aqueles que passarem os olhos pelos relatórios verão que, em relação a Portugal, se elogia o governo por permitir que as cadeias sejam visitadas por observadores internacionais. Ah, sim? E porque não se faz o mesmo em Guantanamo se essa é uma “boa prática”? É também referido que, se for solicitado, os julgamentos criminais podem em Portugal ter um júri. Isto é extraordinário! É como se o único modelo de justiça que houvesse fosse o americano, que, mais ainda, nada tem de justo! (Quem não tem dinheiro não pode ganhar uma causa judicial nos EUA!)

E já nos esquecemos o que há de contraditório (e de injusto e de inaceitável) na imunidade que os EUA exigem para os seus cidadãos face a acusações do Tribunal Penal Internacional? É como se na Humanidade houvesse cidadãos de primeira, os americanos, e cidadãos de segunda.

quinta-feira, março 09, 2006

"Ó Portugal, hoje és nevoeiro"...


WHO GOES WITH FERGUS?

WHO will go drive with Fergus now,
And pierce the deep wood's woven shade,
And dance upon the level shore?
Young man, lift up your russet brow,
And lift your tender eyelids, maid,
And brood on hopes and fear no more.

And no more turn aside and brood
Upon love's bitter mystery;
For Fergus rules the brazen cars,
And rules the shadows of the wood,
And the white breast of the dim sea
And all dishevelled wandering stars.

W. B. Yeats (1892)

Na leitura patriótica que este poema permite, Fergus (Fergus mac Róich), herói e rei mitológico de Ulster, representa a esperança do ressurgimento pujante da Irlanda numa época de "nevoeiro", de desorientação e em que a independência política não se afigurava possível (final do século XIX). Os quatro verso finais têm uma força exortativa admirável. (O poema é retomado por Joyce, no Ulisses, quando Stephen Dedalus o canta numa praia.)
Porque convoquei este poema de Yeats para este post? Porque Cavaco assumiu funções como PR e estou certo de que ele não será o "homem do leme" que vai ajudar Portugal a ser um país mais justo, mais fraterno e melhor para todos. Não terá para Portugal a força mobilizadora que, no poema de Yeats, Fergus tem para a Irlanda. Os portugueses precisam de elevar-se intelectualmente, de ser mais cívicos, menos provincianos, mais solidários e menos medíocres. Cavaco nem se apercebe que é de uma revolução de mentalidades desta índole o que mais necessitamos. E o que sabemos do novo PR é suficiente para concluirmos que ele não nos servirá de exemplo.
(A imagem, de autor desconhecido, representa Fergus mac Róich.)

Agradecimento

Quero agradecer à Carla Hilário da Bomba Inteligente por ter dado destaque ao Tonel de Diógenes, reconhecendo que a tal destaque se deve o considerável número de visitas que temos tido. Agradeço também aos autores dos blogues que colocaram o 'Tonel' na sua lista de blogues recomendados. Destaco entre eles o Cha-no-yu, as Cartas do Moinho (obrigado, Ana) e o Abencerragem (obrigado, Dr. Ricardo).

quarta-feira, março 08, 2006

As ideias erradas dos portugueses sobre o ensino e os professores


O tema em epígrafe dá pano para mangas (para mangas, para casacos, para calças e para vestir toda a população nacional); vou apenas deixar uma nota.

Numa escola de Helsínquia, o Primeiro-Ministro perguntou como funcionavam as aulas de substituição, que são, para este governo, a panaceia universal para o problema da falta de sucesso do sistema de ensino português (ver este post relacionado com o assunto). A resposta que o PM recebeu e que uma jornalista da TSF reproduziu com um tom ironicozinho e com uma farpazinha para os professores nacionais (talvez mesmo deturpando a informação ouvida), foi, grosso modo, a seguinte: naquela escola filandesa não havia aulas de substituição porque os docentes explicam bem a matéria logo à primeira (i.e., quando ela é leccionada pela primeira vez). Nesta resposta, o cu não bate com as calças: as aulas de substituição não são aulas de apoio, mas aulas em que um docente substitui o professor da turma que está a faltar. Adiante.
Comento apenas a farpazinha da senhora jornalista. Os resultados pouco satisfatórios do ensino português não se devem ao facto de os professores "explicarem mal". A ideia de que o bom professor é o que explica bem é uma ideia do passado. O paradigma hoje é outro! Hoje, os saberes contam muito, mas as competências contam tanto ou mais que aqueles. (Competências são a capacidade de um aluno compreender um texto que lê, escrever uma carta formal ou uma exposição, raciocinar matematicamente, resolver problemas de física, etc., etc. É isto que hoje é muito valorizado... e ainda bem!) Além disso, os professores de hoje têm uma preparação didáctica e materiais de ensino como nunca outros professores tiveram. (Ainda me recordo a ausência quase completa de didactismo nas minhas aulas de Português e de Filosofia do Secundário.) O problema é que não se podem fazer omeletes sem ovos. E os ovos que faltam não são apenas o desinteresse e a falta de seriedade e de trabalho da grande massa dos alunos (atenção, há muitos que são bons ou muito bons!) mas também a demissão dos pais do acompanhamento do percurso escolar e do incentivo cultural a dar aos seus filhos. (Muito mais havia para dizer sobre estas questões.)
(O quadro intitula-se "A Philosopher Lecturing with a Mechanical Planetary", e quem o pintou foi Joseph Wright of Derby - 1766, óleo sobre tela, 147,3 x 203,2 cm, Derby Museum and Art Gallery, Derby)

segunda-feira, março 06, 2006

A.S. Byatt e(m) Portugal


Ontem à noite passou na RTP1, a horas decentes, o filme Possessão. O filme é fraco. (Um breve aparte para reprovar a opção deste canal “público” por exibir o Doutor Jivago entre as duas e as cinco da manhã. Que ideia de serviço público é esta?) Dizia que Possessão é um filme fraco; e, no entanto, baseia-se num romance fascinante: Possession, de A.S. Byatt.
Com uma ou outra pequena excepção, a obra de A.S. Byatt não está traduzida em Portugal. E o facto parece-me incompreensível. É que Byatt é uma das mais importantes autores do Reino Unido e os seus romances, contos e novelas são daqueles que conseguem aliar a qualidade literária à acessibilidade ao grande público. Angels and Insects é uma perolazinha da novelística contemporânea: a primeira novela deste díptico, “Morpho Eugenia”, que deu origem ao interessantíssimo filme Angels and Insects (o qual passou despercebido em Portugal), encena questões de darwinismo, eugenia, casta e hierarquia social num enredo apaixonante – agora fiquei com vontade de escrever um post sobre esta novela. Possession fascina-nos pelas ligações que estabelece entre o Amor, a História, o saber, a arte e literatura: ficamos com a ideia de que, ao gostarmos mais de poesia, da arte, da História, estamos mais aptos para viver mais intensamente o Amor e a Vida. Por seu lado, The Matisse Stories reúne três contos “pós-modernos” em torno da obra do pintor francês. E é admirável a forma como a pintura de Matisse renasce nestas estórias para ganhar sentido no (e iluminar sentidos na vida do) século XX. Still Life e Sugar and other stories foram outros dois livrinhos que me deliciaram.
Curiosamente, o meio académico e universitário português até tem prestado alguma atenção à obra de Byatt. Porque raio ela não é então traduzida entre nós?

sábado, março 04, 2006

'As velas ardem até ao fim', de Sándor Márai


Comprei e li em versão inglesa o romance Embers, do autor húngaro Sándor Márai, quando estive em Budapeste. Em 2001 saiu, com a chancela da Dom Quixote, uma tradução portuguesa com um título mais fiel ao título original: As Velas ardem até ao fim. (Não sei se existe outra tradução portuguesa da obra.)

A acção do romance (tratar-se-á de uma novela?) inicia-se com o reencontro de dois amigos de juventude, que se haviam afastado quarenta e um anos antes em circunstâncias trágicas. A cena desenrola-se numa só noite, num velho castelo localizado no sopé dos Montes Cárpatos que pertence a Henrik, antigo general do Império Austro-Húngaro, que recebe o seu antigo companheiro de armas, Konrad. A secreta relação amorosa que Krisztina, mulher de Henrik, manteve com o sensível Konrad termina quando este subitamente abandona Viena e ela se suicida. Henrik descobre, com surpresa, a dupla traição de que fora vítima e daí em diante a sua vida perde a sua raison d’être e torna-se um deserto existencial.

A reconstituição, ou a interpretação, que Henrik consegue fazer da relação assolapada (a palavra “assolapada” significa escondida e não inflamada) entre Konrad e Krisztina é fragmentária e insatisfatória – em caso algum é possível reconstituir a “verdade” dos factos. Mas o que mais angustiara Henriki foi não compreender os incompreensíveis sentimentos que moveram os dois amantes e os levou à traição. A mestria da técnica narrativa de Marai não reside no facto de os acontecimentos do passado serem narrados em analepse quarenta e um anos depois, mas antes no facto de, no reencontro dos dois homens, a reconstituição ser feita por aquele que dos três menos sabia do que se havia passado e que desconhecia os motivos e os sentimentos que levaram os outros dois à traição – como se tais motivos e sentimentos fossem verbalizáveis. Quando o previsível seria que Konrad preenchesse, durante a conversa, os vazios do passado e avançasse explicações, Márai opta por limitar a personagem a curtíssimas (e nada esclarecedoras) falas ao mesmo tempo que decide que a recriação fragmentária de Henrik esteja despida de uma curiosidade tensa e de perguntas insistentes – há muito que este havia deixado de querer ver esclarecidas as suas dúvidas, porque as respostas já não o fariam recuperar o sentido que a sua vida tinha perdido.
Um outro aspecto central da narrativa, menos tocante mas não menos interessante, encontra-se no paralelo que é traçado entre a decadência do Império Austro-Húngaro e o percurso trágico das três personagens, que representam metonimicamente aquela nação. A pátria prestes a desabar assiste à perda de influência da nobreza e do exército, ao carácter obsoleto dos valores da nobreza (hierarquia, honra, patriotismo, etc.) num mundo em mudança (início do séc. XX), à emancipação da mulher – questões subterrâneas mas marcantes na relação das três personagens. Sendo homens do seu tempo, Henrik e Konrad não conseguem sobreviver ao colapso desse mundo. Por isso, quando se reencontram, em 1941, são já dois anacronismos, dois simulacros (para usar o termo de Baudrillard) num mundo que está numa nova transição – note-se que a Grande Guerra que então se trava nunca irrompe na conversa dos dois antigos soldados. Para além de estarem interiormente mortos também o estão ontologicamente, porque a realidade em que vivem deixou há muito de ser a sua.

sexta-feira, março 03, 2006

Cabinda e as Construções da sua História (1783-1887), de Alberto Oliveira Pinto

Não vou falar aqui do lançamento do livro Cabinda e as Construções da sua História (1783-1887), de Alberto Oliveira Pinto, porque o autor é dos escribas deste blogue. Falei do livro e do evento no Blog Café.

quinta-feira, março 02, 2006

O Erro de Antero

Da mesma forma que António Damásio anuncia uma falha no pensamento cartesiano como estratégia de marketing editorial, também eu achei que podia apontar um "erro" nos escritos de Antero de Quental para levar os leitores a prestarem atenção a este post.
Nas suas “Causas da decadência dos povos peninsulares…”, Antero aponta três explicações para a crise estrutural de que Portugal não consegue recuperar no século XIX. Segundo o pensador, a nossa decadência devia-se, então, ao Absolutismo do Antigo Regime, à influência asfixiante da Catolicismo da Contra-Reforma e, economicamente, ao facto de a nossa economia se basear na exploração das colónias. Três propostas apresentava Antero para ultrapassarmos esta situação: o pensamento livre e a tolerância religiosa, a ascensão política e económica da classe média e o desenvolvimento da indústria nacional. No século XIX, eram estas, de facto, as três medidas mais avisadas mas as que se implementaram tenuemente no século XX.

Antero não conseguiu prever – e daí o erro que deslealmente lhe apontei – que, no séculos XX e XXI, e apesar da tolerância religiosa, a Igreja Católica continuaria a ter a influência suficiente e o monopólio dos meios estatais que lhe permitiam continuar formatar a mente dos portugueses e, desta forma, a conseguir que o país se mantivesse a sua situação de nação mais atrasada do Ocidente. No Estado Novo, a Igreja foi mesmo o principal Aparelho Ideológico do Estado (cf. Althusser). A ela se deve, em grande parte, o conservadorismo autoritário que ainda hoje domina a sociedade portuguesa. Também não previu Antero que a classe média imporia um sistema capitalista de especulação e de exploração, um sistema individualista que não se revelou caminho para fazer de Portugal um país com mais justiça social, melhor qualidade de vida e uma cidadania mais sã. Não pôde o doutrinador da Geração de 70 antever que a classe média emburguesada e bronca afundaria ainda mais este “reino da estupidez” no lodo da acefalia existencial e cultural e do consumismo vão; nem que esta classe média investisse tanto a tentar recuperar uma hierarquia social, que é cruel para os desfavorecidos e para as minorias e contra a qual ela tinha lutado em 1820.

Imagens e simbologia



Images

I.
Like a gondola of green scented fruits
Drifting along the dank canals at Venice,
You, O exquisite one,
Have entered my desolate city.


O poema é a primeira secção de "Images", composição do imagista Richard Aldington. O quadro intitula-se O Grande Canal e a Igreja da Saúde e foi pintado por Canaletto (1730, óleo sobre tela, Museum of Fine Arts, Houston).

Crítica a uma certa crítica literária

O assunto deste post não tem que ver directamente com o recente fogo cruzado que envolveu poetas e críticos sobre a questão das coutadas literárias. O problema é outro e não o vi denunciado.

Tenho encontrado em alguns periódicos (que consideraríamos “não especializados”) um tipo de crítica literária que muito pouco tem de crítica (a menos que nos refiramos ao seu estado clínico). São recensões de obras literárias e de traduções que, com o pretexto de se dirigirem a um público “generalista” (o que é isso de “público generalista”?), se dedicam a resumir a biografia do autor, a dar umas pinceladas sobre o conjunto da sua obra e a recordar aspectos contextuais avulsos. Depois, para o fim, lá aparecem umas banalidades rápidas sobre o livro em questão.
Tais textos pouco têm de crítica literária. Furtam-se a recensear, de facto, a obra em causa (a qual se suspeita que o recenseador não terá lido até ao fim) e não cumprem a sua função de dar conta das questões centrais do livro e do modo como são tratadas. Como não chamam a atenção para a forma como o texto se estrutura nem discutem as suas qualidades e o que ele traz de novo, não ajudam o leitor “não especializado” nem satisfazem o leitor que tem conhecimentos de literatura. O recenseador também não arrisca porque não arrelia ninguém – lá voltamos às amizades e às inimizades na comunidade literária.

O problema é se este tipo de crítica faz e escola.

Os meninos de ontem e os meninos de hoje


Apresento aqui uma “mensagem” que me chegou por e-mail e que explica, em parte, o que vai mal nos adolescentes de hoje. (Tive a indecência de introduzir algumas alterações da minha autoria no texto.)
Mensagem aos que passaram a barreira dos 25: nós tivemos sorte!
Olhando para trás, é difícil acreditar que estejamos vivos.
Os da nossa geração viajaram em carros sem cintos de segurança ou airbag. Não havia tampas à prova de crianças em frascos de remédios nem mecanismos de segurança para portas ou armários. Andávamos de bicicleta sem capacete… e até pedíamos boleia a desconhecidos.
Bebíamos água directamente da mangueira e não da garrafa. Partilhámos garrafas de refrigerante e ninguém morreu por isso.
Gastámos horas a construir os nossos carrinhos de rolamentos para nos lançarmos ladeira abaixo e só então descobríamos que nos tínhamos esquecido dos travões. Depois de colidir com algumas árvores, aprendíamos a resolver o problema.
Saíamos de casa de manhã, brincávamos o dia inteiro, e só voltávamos quando se acendiam as luzes da rua. Ninguém nos podia localizar. Não havia telemóveis. E nada nos acontecia.
Partimos ossos e dentes, e não havia nenhuma lei para punir os culpados. Eram acidentes. Ninguém para culpar: os culpados éramos nós mesmos. Tivemos brigas, esmurrámo-nos uns aos outros e aprendemos a superar isto.
Não tivemos Playstations, Nintendos nem toda uma vasta gama de jogos de vídeo; mas tínhamos o melhor de todos os brinquedos: a nossa imaginação. Não tínhamos 99 canais de TV Cabo, aparelhagens sofisticadas, MP3 nem computadores com Internet. Tínhamos amigos!
Nos jogos da escola, nem toda a gente fazia parte da equipa. Os que não entravam tiveram que aprender a lidar com a decepção... sem psicólogos! Os nossos pais não desdenhavam os nossos amigos para nos idolatrar. E, desse modo, aprendemos que não éramos o centro do mundo e que havia outros com os mesmos direitos que nós.
Alguns estudantes eram menos aplicados do que outros. Tinham más notas por sua culpa. Não se inventavam testes extra. Éramos responsáveis pelas nossas acções e arcávamos com as consequências.
Os que não liam e não estudavam tinham problemas com a ortografia. Uns procuravam ultrapassar o problema, outros nem por isso. Mas não tinham o papá a justificar a falta de estudo com relatórios médicos a assegurar que eram disléxicos.
A ideia de um pai proteger-nos se desrespeitássemos um professor era inadmissível! Os pais ficavam do lado dos professores! Imaginem! E se partíamos um vidro, pagávamo-lo com a nossa mesada, não tínhamos o papá a desculpar o nosso acto e a responsabilizar outrem. Assim aprendemos a respeitar os outros e as coisas.
A nossa geração produziu alguns dos melhores compradores de risco, criadores de soluções e inventores. Os últimos 50 anos foram uma explosão de inovações e novas ideias.
Tivemos liberdade, fracasso, sucesso e responsabilidade, e aprendemos a lidar com isso. Parte da nova geração está a ter dificuldade em crescer de forma autónoma e com responsabilidade. Mas a culpa não é sua.

quarta-feira, março 01, 2006

Diógenes, patrono do blogue e nosso modelo de vida

Convocamos para este arranque do blogue uma representação icónica do seu patrono, Diógenes de Sínope. Pretendemos ter na blogosfera a atitude de despojamento do filósofo cínico e olhar os homens com a sua simbólica lanterna, sem termos a pretensão de seguirmos a sua filosofia.
O quadro intitula-se Diógenes e é da autoria de Jean-León Gérôme (1860, óleo sobre tela, Walters Art Museum, EUA). Já vi esta pintura acompanhada pela frase: Ao ter falhado na sua demanda por um homem honesto, Diógenes faz dos estóicos cães seus companheiros.